Embriões de fronteira

Pesquisadores desenvolveram um embrião humano até o 13º dia, um a menos do que o tempo permitido pela lei de vários países – inclusive as dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde os experimentos foram feitos. Ao resvalar esse limite, chegaram a evidências que poderão ajudar a entender o aborto espontâneo e defeitos de nascimento. E se defrontaram também com mistérios.

Ao conseguir fazer que embriões se desenvolvam tanto tempo assim, a equipe de Ali Brivanlou, da Universidade Rockefeller (EUA), e Magdalena Zernicka-Goetz, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), encontrou um grupo de células que apareceu no 10º dia e desapareceu 48 horas depois.

A equipe desconfia que seja um órgão transiente eliminado ao longo da evolução – mais ou menos como nossa ‘cauda ancestral’. Naquela etapa do desenvolvimento, esse ‘órgão fantasma’ responderia, segundo os pesquisadores, por cerca de 5% a 10% das células do embrião. A natureza dessa estrutura permanece misteriosa – e, quase certamente, será tema de estudos posteriores.

Além disso, o estudo ‘quase em tempo real’ da entrada em ação (ou, tecnicamente, expressão) dos genes revelou que há grandes diferenças entre nosso desenvolvimento embrionário e o de roedores – estes últimos muito usados em pesquisa médica para entender doenças humanas.

 

Recorde anterior

O recorde anterior era de nove dias. O que já deve ser considerado um feito e tanto, pois, depois do 7º dia, quando o embrião se implanta na parede do útero, ele passa a necessitar das condições do ambiente uterino, o que é muito difícil de reproduzir em laboratório – até porque detalhes desse ambiente ainda são desconhecidos.

Pode parecer que quatro dias a mais é pouco se comparados aos nove meses de gravidez. No entanto, quando se trata de evolu­ção embrionária humana, cada hora conta

Pode parecer que quatro dias a mais é pouco se comparados aos nove meses de gravidez. No entanto, quando se trata de evolu­ção embrionária humana, cada hora conta.

Por que 14 dias? Cerca de uma dúzia de países no mundo adotam esse limite, ou por lei, ou como diretriz, porque é o momento em que as células embrionárias começam a formar camadas para dar origem aos órgãos. Mais: segundo cientistas, esse é o momento no qual embriões se dividem para gerar gêmeos. E, do ponto de vista ético, defendem especialistas em bioética, começa aí a criação de indivíduos.

O diferencial da equipe de pesquisadores é ter criado o ‘berço’ no qual os embriões puderam crescer por tanto tempo: um gel enriquecido com oxigênio, desenvolvido pela equipe de Zernicka-Goetz. A técnica em si parece ser tão importante quanto as descobertas feitas com ela. E, tudo indica, simularia o ambiente uterino para permitir o desenvolvimento dos embriões para além de duas semanas – os pesquisadores interromperam os experimen­tos no 13º dia.

Em geral, embriões são desenvolvidos ao longo de poucos dias em laboratório com o auxílio de células maternas. Mas, depois de duas semanas, é preciso um coquetel (ainda desconhecido) de hormônios e um ambiente tridimensional – ou seja, diferente daquele ‘plano’ das placas usadas para cultura de células em laboratório.

Até esse momento, a ciência sabe muito mais sobre a evolução embrionária de outros animais do que a de humanos. Portanto, estudar etapas avançadas do desenvolvimento embrionário humano é crucial para entender defeitos genéticos, doenças, formação de órgãos etc.

Cerca da metade dos embriões implantados no útero humano não vinga. É uma taxa relativamente alta, e o motivo para tal é desconhecido por especialistas em fertilização artificial. A técnica e os resultados já estão sendo usados para entender a viabilidade de embriões criados por fertilização in vitro.

Os resultados das duas equipes – os quais estão em Nature (12/05/16) e Nature Cell Biology (04/05/16 on-line) – reforçam uma dedução quase óbvia: modelos animais não são idênticos aos humanos. Por exemplo, as células que dão origem ao feto e ao saco vitelino (ou vesícula vitelina) se diferenciam mais tarde em humanos. Na explicação quase tautológica de Zernicka­Goetz para a revista Science (06/05/16), “temos que estudar embriões humanos para entender os embriões humanos”.

 

Perguntas de fronteira

Essas estruturas poderiam ser usadas para estudar defeitos em fetos e doenças, entre tantos outros temas, sem as questões éticas que envolvem o crescimento de embriões humanos

Um desdobramento importante desses resultados é que eles devem ajudar pesquisadores que tentam obter, em laboratório, estruturas que se assemelham a embriões humanos, mas formadas por células­tronco, ou seja, aquelas que, em tese, podem se transformar em qualquer tecido do organismo. Essas estruturas poderiam ser usadas para estudar defeitos em fetos e doenças, entre tantos outros temas, sem as questões éticas que envolvem o crescimento de embriões humanos.

Note o verbo no condicional do último trecho acima: ‘poderiam’.

A ‘lei (ou diretriz)’ do 14º dia surgiu em 1979. Foi um instrumento de política científica para permitir a pesquisa com embriões humanos. Portanto, fez esse tema prosperar. Mas, com os avanços recentes, surgem perguntas: caso essas estruturas com células-tronco sejam produzidas em laboratório, continuaria a valer o limite de duas semanas? Que problemas éticos – se é que eles existiriam – poderiam impedir esse procedimento? A lei deveria se adaptar ao avanço da ciência?

Isso só reforça a importância e qualidade dos resultados de Brivanlou e Zernicka­Goetz: eles avançam não só as fronteiras da ciência, mas também as da bioética.

 

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje | RJ