Entre o início e o fim

A criação do universo é um tema que tem mobilizado a humanidade ao longo da história e, para além das investigações científicas, a necessidade de explicar esse evento aparece em várias mitologias. Mas a preocupação com esse momento inicial nem sempre é premente nos diferentes grupos sociais e religiosos. Esse é o caso dos povos xinguanos e de religiões afro-brasileiras, para quem o que mais importa são os acontecimentos e transformações do mundo atual.

Análises de histórias sobre a constituição do mundo perpetuadas nesses grupos foram apresentadas no evento Mitos cosmogônicos, realizado pela revista Cosmos & Contexto na semana passada no Rio de Janeiro. O encontro reuniu antropólogos, historiadores, filósofos, físicos, entre outros pesquisadores, para discutir ciência e mitologia.

Os povos indígenas que habitam a região do Alto Xingu têm uma diversidade de mitos que contam a história remota do mundo e de sua configuração atual

A antropóloga Marina Vanzolini, pós-doutoranda do Museu Nacional/ UFRJ, contou que os povos indígenas que habitam a região do Alto Xingu, no nordeste do Mato Grosso, têm uma diversidade de mitos que contam a história remota do mundo e de sua configuração atual. Um deles foi apresentado à pesquisadora pelos índios da etnia Aweti – o que, segundo ela, lhe custou uma bicicleta e quilos de miçanga.

Em linhas gerais, o mito conta a história do primeiro homem do mundo, filho de um homem-árvore com um morcego, que, para não ser devorado por Jaguar, o chefe dos felinos, promete a ele suas filhas em casamento. Então ele prepara bonecas de pau ornamentadas e as envia a Jaguar. Mas, em função de vários percalços no meio do caminho, apenas uma chega ao chefe dos felinos e se torna sua esposa.

Depois de alguns acontecimentos, a mulher de pau – grávida de gêmeos – acaba sendo morta por sua sogra. Seus filhos, Sol e Lua, tentam desenterrá-la e ressuscitá-la, dando origem ao primeiro quarup, ritual de homenagem aos mortos ilustres realizado até hoje pelos xinguanos. Sol e Lua passam então a dar diferentes objetos para os povos da região, o que explicaria a diferença entre povos xinguanos e entre eles e os brancos.

Quarup
O surgimento do quarup, ritual de homenagem aos mortos realizado pelos índios xinguanos, marca a origem da vida breve na mitologia desses povos. (foto: Noel Villas Bôas, 1998 – CC BY-SA 3.0)

Vanzolini explicou que os mitos xinguanos não têm uma elaboração sistemática e não estão preocupados com uma organização racional e linear para a origem do que quer que seja. “Eles não estão interessados em descobrir a essência das coisas. Ao contrário de nós, os xinguanos jamais se preocuparam em elaborar uma única narrativa cronológica e coerente sobre a origem do mundo.”

Apenas uma nova ordem

Segundo a antropóloga, para a maioria dos xinguanos, não há criação, o universo sempre existiu, mesmo antes do mito. E esse mundo pré-mito era plenamente social, com seres que viviam e interagiam de modo muito similar ao dos índios atualmente. “É uma mitologia que não postula o caos, ela expressa o mundo em transformação. Na verdade, é uma ordem que se cria a partir de outra ordem.”

Mas esse processo de surgimento de uma nova ordem não é considerado irreversível. “Quando o mito fala em transformação, não se trata do que deixou de ser, mas de uma potência que pode voltar a qualquer momento”, explicou Vanzolini.

Essa possibilidade de reversão das transformações também está presente na mitologia de religiões afro-brasileiras, como ressaltou o antropólogo Edgar Barbosa Neto, pós-doutorando da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Segundo ele, que estudou o candomblé praticado no sul do Rio Grande do Sul, a cosmologia afro-brasileira vê a criação como um trabalho contínuo, que supõe, em diferentes planos, processos de divisão e multiplicação.

Nas religiões afro-brasileiras, não há uma preocupação com o fim, com a extinção da vida em seu conjunto

Há um Deus criador, chamado de Olorum, que não participa do plano ritual e que gerou outros deuses criadores, os orixás, divididos em formas da natureza (como o vento, o mar etc.) “Essas divindades são como a matéria que compõe o mundo e o objetivo é fazer com que esses seres ajam de modo a favorecer uns e desfavorecer outros”, explicou Barbosa Neto. “Trata-se de uma religião voltada para a vida na Terra. O Deus criador só é lembrado quando não há mais recursos rituais disponíveis, aproximando-se, nesse caso, da ideia de ‘destino’”.

O antropólogo disse que, embora as religiões afro-brasileiras sejam mais ligadas à prática do ritual do que ao mito, os orixás têm uma inequívoca dimensão narrativa. “Contam-se várias histórias relativas aos feitos e desfeitos dessas divindades”, lembrou, acrescentando que, quando há mitos que descrevem a criação, eles estão associados a um orixá específico, Oxalá. Por outro lado, segundo ele, não há uma preocupação com o fim, com a extinção da vida em seu conjunto. “Eles estão mais interessados no que se passa entre o início e o fim.”

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line