À primeira vista, o aspecto curioso do sistema de galáxias Cheshire Cat já desperta atenção por si só. Os dois “olhos” e o “sorriso” da imagem observada por telescópios da Nasa garantiram o nome que remete ao Gato de Cheshire, ou Gato Que Ri, personagem icônico de Alice no País das Maravilhas. Para além da referência à obra de Lewis Carrol, esse sistema promete fornecer aos astrônomos uma oportunidade única: investigar um estágio na formação de um grupo fóssil e assim entender melhor qual é a origem desse tipo de objeto.
A aparência que originou o nome do sistema se deve ao fenômeno das lentes gravitacionais, previsto pela Teoria da Relatividade Geral de Einstein e só depois observado com a ajuda de telescópios. Trata-se de sistemas de objetos massivos que distorcem o espaço-tempo e funcionam como lentes que possibilitam ver mais de perto objetos distantes, como galáxias e exoplanetas.
Assim, a “boca”, as “orelhas” e o “nariz” do gato não fazem parte dos dois sistemas principais (os “olhos”): são outras quatro galáxias mais distantes. “A ‘feição’, formada por arcos gravitacionais, é o resultado da distorção da luz de galáxias que ficam além do Cheshire Cat, por efeito gravitacional da massa do sistema”, explica Raimundo Lopes, coordenador do curso de graduação em Astronomia da Universidade Federal de Sergipe e pesquisador do Observatório Nacional (RJ).
Embora a imagem seja curiosa por si só, as atenções dos cientistas estão voltadas principalmente para os dois grupos de galáxias que formam os “olhos” do gato. Acredita-se que, em um bilhão de anos, eles podem se fundir, criando uma galáxia elíptica gigante fóssil. “Isso o torna um forte candidato a progenitor de um grupo fóssil e, como tal, oferece vínculos importantes para os cenários de formação de grandes estruturas do Universo”, afirma Lopes.
Um novo olhar sobre os grupos fósseis
O artigo The Cheshire Cat Gravitacional Lens: The Formation of a Massive Fossil Group, publicado em maio deste ano no prestigiado Astrophysical Journal, afirma que a observação do sistema de galáxias pode apontar para uma explicação da formação de grupos fósseis diferente da teoria mais aceita até agora.
Detectados pela primeira vez em 1994, os grupos fósseis apresentam poucas galáxias e, em geral, uma grande galáxia sem nenhuma intermediária ao seu redor. Esses sistemas se diferem de um grupo de galáxias, formado por conjuntos pequenos e de pouca massa, e dos chamados aglomerados, com maior massa.
De início, se supôs que os grupos fósseis eram formações antigas e que as menores galáxias perderiam energia ao longo do tempo, sendo assimiladas pela galáxia central. Como esse processo demandaria muito tempo, assumiu-se que talvez esses sistemas fossem estruturas formadas nos primórdios do Universo – daí o termo “fóssil”. Entretanto, essa explicação atualmente é questionada. “Se descobriu que os grupos fósseis emitem raios-X e a massa deles é realmente grande. Na verdade, não são exatamente grupos, já que a massa é comparável a dos aglomerados. Só que eles têm poucas galáxias”, explica Renato Dupke, astrofísico do Observatório Nacional e coautor do artigo junto com os americanos Jimmy Irwin, Peter Maksym, Lucas Johnson e Raymond White e o chileno Eleazar Carrasco.
Tradicionalmente, um grupo fóssil é tido como uma fase transitória das galáxias e parte de um estágio de evolução de um aglomerado. Segundo o artigo, o Cheshire Cat pode mostrar que um grupo fóssil se forma a partir da fusão de outros grupos fósseis preexistentes – caso dos dois grupos de galáxias que deverão colidir no sistema.
De acordo com Dupke, o primeiro indício da colisão iminente foi a detecção do centroide de raios-X entre os dois “olhos” do gato. “Geralmente, quando se tem emissão, o centro de raios-X coincide com o centro da galáxia mais brilhante. No caso do Cheshire Cat, o centro não fica em nenhuma das duas galáxias principais do sistema”, detalha o astrofísico.
A hipótese se fortaleceu com a constatação da velocidade radial de galáxias dos grupos, medida pela análise espectroscópica realizada com o telescópio Gemini Norte, localizado no Havaí. A medição da radiação eletromagnética emitida pelas galáxias permitiu identificar dois picos de velocidade de 500 mil km/h em cada um dos grupos. Como os indícios apontam que um está se movendo em direção ao outro, a colisão seria inevitável.
Um terceiro aspecto é a alta temperatura central das galáxias, detectada pelo Observatório de Raios-X Chandra, da Nasa: cerca de 50 milhões de graus Celsius. O resultado foi muito superior ao que se esperava e contrasta com a baixa temperatura de grupos de galáxias normais. “Nós achamos que esse aumento de temperatura central é uma consequência da colisão a alta velocidade desses dois sistemas”, acredita Dupke.
Ainda são poucos os registros sobre grupos fósseis, por isso a pesquisa prossegue identificando amostras para entender mais sobre esse tipo de conjunto de galáxias. “Há cinco anos buscamos levantar mais e mais dados sobre grupos fósseis. Também precisamos fazer simulações teóricas para compreender melhor como formam esses sistemas”, conclui Dupke.
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Iara Pinheiro
Instituto Ciência Hoje/RJ