Escolhas por trás da união

Seria ingenuidade afirmar que não existe uma lógica que governa a escolha de um parceiro. Há fatores objetivos e subjetivos que ajudam a encontrar a pessoa para a qual se diz “sim”. Falar de como se formam os casais significa, também, entender o comportamento sociocultural de um país.

Luciene Longo tinha isso em mente. A analista de pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vislumbrou, de modo empírico, uma mudança no comportamento amoroso do brasileiro: aparentemente, havia mais casais inter-raciais. Estava certa. Ao observar e comparar os números de três censos realizados entre 1980 e 2000, percebeu que em 20 anos a quantidade de casais de cor diferente subiu de 15% para 35%. Quis entender então quais são os fatores que explicam essa união.

“Minha ideia inicial era que havia algum mecanismo de compensação, e, de fato, há”, conta Longo, que pesquisou sobre o assunto no doutorado em demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar – UFMG). 

“Minha ideia inicial era que havia algum mecanismo de compensação entre escolaridade e união inter-racial”

“Observando os números, percebi que quanto maior a diferença de escolaridade e raça/cor entre o casal, menores são as chances de união.”

Longo sugere que, para ‘compensar’ a união com uma pessoa de pele mais escura – associada muitas vezes a um menor status social –, o homem (ou a mulher) escolhido(a) precisa ter uma escolaridade superior à do pretendente. É uma questão de prestígio social, ainda embasada no racismo – “Que existe!”, ela faz questão de ratificar – na nossa sociedade.

“Esse resultado é um indicativo de que, embora as uniões inter-raciais estejam aumentando com o tempo, ainda é necessária uma ‘troca’ de status para o seu favorecimento”, explica a pesquisadora.

Longo analisou dados de 1 milhão de mulheres com idade entre 20 e 29 anos. Entusiasmada com a percepção de que há um mecanismo de compensação que envolve, pelo menos, dois fatores (status e escolaridade), tentou expandir a ideia e inserir uma possível nova moeda de troca: a religião.

“Confesso que, no início, acreditei que a religião seria um claro fator de compensação. A hipótese não foi comprovada, porque a religião aparece com tanta força na família brasileira que ‘supera’ qualquer relação de cor”, diz Longo. “É muito pequeno o percentual de casais de religiões diferentes e, mais ainda, de uma pessoa sem religião que se casa com outra com religião”, completa a pesquisadora. E aponta: 90% das uniões no Brasil se dão entre pessoas com a mesma religião.

Oficial ou consensual

Outro dado revelado pela pesquisa: o casal inter-racial aparece com mais frequência nas chamadas uniões consensuais (onde não há a formalização do casamento). Na tese, Longo propõe duas hipóteses, uma positiva e outra negativa:

“Isso pode ser fruto tanto de uma maior aceitação das diferenças, reflexo de uma posição mais flexível em relação a normas veladas da sociedade, mas também pode ser um indicativo negativo, revelando uma maior dificuldade de assumir a formalização da união, exatamente em função dessas diferenças raciais.”

“O preconceito racial leva ao preconceito econômico e vice-versa”

A pesquisadora mostra-se otimista com as conclusões a que chegou em seu estudo. Para ela, a curva ascendente das uniões inter-raciais cria uma sociedade miscigenada, o que – a longo prazo – gera um efeito positivo em relação ao racismo.

Porém, faz questão de afirmar que o objetivo do trabalho nunca foi ‘levantar a bola’ e discutir o preconceito. Mas, quando perguntada, não se nega a aprofundar o assunto.

“Claro que [o racismo] é uma questão que acompanha o texto. O casamento é uma maneira de ascender socialmente e a união e a repulsão acontecem devido a vários fatores, entre eles o preconceito racial e econômico”, fala Longo, para logo ponderar. “No fundo, o preconceito racial leva ao preconceito econômico e vice-versa, é muito difícil saber o que vem primeiro.”


Thiago Camelo

Ciência Hoje On-line