Nos vasos sanguíneos fetais pode residir um novo caminho para o transplante de células hematopoiéticas – as células-tronco responsáveis pela formação de todas as células do nosso sangue –, com potencial para revolucionar o tratamento de leucemia. A conclusão, divulgada como artigo de capa da revista Science (8/1), é de um grupo de pesquisadores da Escola Albert Einstein de Medicina, em Nova York (EUA), incluindo o biomédico brasileiro Alexander Birbrair, pós-doutorando na instituição.
Em experimento realizado com fígados fetais de camundongos, o estudo mostrou que células localizadas nas paredes dos vasos sanguíneos – chamadas pericitos – formam, durante a gestação, um nicho hepático que contribui para a expansão das células hematopoiéticas. Após o parto, essas células migram do fígado para a medula óssea, onde permanecem em número reduzido. “Quando adultas, essas células ficam ‘dormentes’ e só são ativadas quando necessárias”, conta Birbrair. “Trabalhos anteriores do nosso grupo de pesquisa mostraram que são justamente os pericitos que mantêm as células hematopoiéticas inativas neste período, como uma reserva para o nosso sangue. Já no fígado fetal, como o organismo está crescendo, essas células estão em expansão ativa – e os pericitos parecem contribuir neste processo”, explica.
Segundo o biomédico, uma única célula-tronco hematopoiética retirada da medula de um adulto é capaz de criar diversos tipos de células que existem no sangue. É sobretudo graças a essas células que transplantes de medula ajudam a salvar a vida de pacientes com leucemia – o procedimento serve justamente para tentar repor as células sanguíneas destruídas pelos tratamentos de quimioterapia e radioterapia.
Hoje, porém, as células-tronco hematopoiéticas precisam ser transplantadas quase imediatamente após a retirada para doação, pois os cientistas ainda não sabem como mantê-las vivas por períodos prolongados ou cultivá-las em larga escala sem perder o seu potencial. “Essas células já são cultivadas em laboratório, mas em quantidades insuficientes para um transplante”, diz Birbrair. “Descobrir como promover a expansão dessas células pode gerar sistemas de cultivo para aplicações clínicas, a partir da expansão de células-tronco hematopoiéticas derivadas, por exemplo, do sangue do cordão umbilical, onde elas também estão presentes”, acredita o biomédico.
Desenvolvimento em cadeia
Já se sabia que os pericitos são células-tronco multipotentes, ou seja, capazes de formar diversos tipos de células, como células do tecido conjuntivo ou musculares. A descoberta de que os pericitos podem regular o funcionamento das células-tronco hematopoiéticas é, portanto, mais um capítulo de uma sequência de estudos que têm surpreendido os cientistas. O artigo da Science corroborou a existência de tipos de células-tronco (como os pericitos) capazes de formar outras células, demonstrada em estudos anteriores de Birbrair, e, além disso, mostrou que elas também influenciam outras células-tronco (as hematopoiéticas), em uma cadeia de desenvolvimento que pode ser a chave para desvendar diversos enigmas sobre o funcionamento do corpo humano.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores se basearam em um sistema de caracterização dos pericitos desenvolvido pelo brasileiro durante seu doutorado na Universidade de Wake Forest, na Carolina do Norte (EUA). Ao analisar os pericitos do tecido muscular, Birbrair e seus colegas descobriram dois tipos diferentes de células: os pericitos do tipo 1 produzem tecidos adiposos e fibrosos e estão relacionados à cicatrização; já os pericitos do tipo 2 formam os músculos e vasos sanguíneos novos – diferentemente dos demais, esses últimos expressam uma proteína chamada nestin, que serve como um marcador molecular.
Com base nessa informação, o grupo de Nova York identificou a presença de pericitos tipo dois ao redor dos vasos sanguíneos do fígado de fetos de camundongos transgênicos, por meio da observação da proteína marcadora nestin. Depois, os especialistas comprovaram, in vitro, seu funcionamento como células-tronco capazes de formar diversos tipos de células. Por fim, eliminaram essas células dos animais, para observar o que aconteceria: o resultado foi uma diminuição na expansão das células hematopoiéticas, o que confirmou a função dos pericitos.
Metástases ósseas na mira
A descoberta, no entanto, ainda não esclarece exatamente como se dá essa interação entre pericitos e células-tronco hematopoiéticas. “O que já entendemos, por exemplo, é que na medula óssea adulta os pericitos estão relacionados à produção de citocinas, sinais secretados e enviados para que as células-tronco hematopoiéticas sejam mantidas ali”, afirma Birbrair. Entender quais são os sinais enviados para a produção dessas células no fígado fetal e como elas influenciam nessa expansão e na migração das células-tronco hematopoiéticas para a medula óssea após o nascimento pode representar um novo leque de possibilidades para tratamentos de doenças sanguíneas no futuro. “Se nós conseguirmos descobrir quais são os elementos específicos que esses pericitos estão secretando para promover a expansão dessas células, talvez não precisemos nem dos próprios pericitos para cultivá-las em larga escala nos laboratórios”, analisa o brasileiro.
Para Franklin Rumjanek, do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a descoberta de que existe uma rede regulatória das células-tronco hematopoiéticas durante o desenvolvimento embrionário pode de fato impulsionar a expansão deste tipo de célula em laboratório. “O trabalho destaca o fato de que a sinergia entre os órgãos – no caso, o sistema circulatório da placenta, o fígado fetal e a medula óssea – vai além das propriedades fisiológicas canônicas de cada tecido”, analisa. “Além disso, mostra potencial de viabilizar a expansão das células-tronco hematopoiéticas para fins médicos em curto prazo”, acredita.
Um dos desdobramentos do estudo é a análise das interações entre pericitos, células-tronco hematopoiéticas e outras células na medula óssea adulta, tema da atual pesquisa de Birbrair. “Quero ajudar a compreender como a medula óssea funciona e o que muda com diversos tipos de doença, como a leucemia. Além disso, tenho estudado a influência do sistema nervoso central na medula óssea adulta, pois parece que há uma comunicação entre esse sistema e as células-tronco hematopoiéticas”, detalha o pesquisador.
Birbrair acredita que, além do tratamento para doenças sanguíneas, diversos pacientes poderão se beneficiar das alternativas trazidas por estudos como esse. “Há todo um campo de pesquisa sobre outros tipos de tumores, como cânceres de mama e de próstata, que quando são agressivos têm tendência a causar metástase nos ossos”, pontua. “Essas metástases vão para a medula e podem competir por espaço com as células-tronco hematopoiéticas que já estavam ali. Se conseguirmos identificar as ‘vítimas’ e os ‘agressores’ neste processo, poderemos, no futuro, tentar solucionar o problema”.
Simone Evangelista
Especial para a CH Online