Exposição prejudicial

Os números assustam: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 40% das crianças do mundo são regularmente expostas ao fumo passivo – isto é, inalam involuntariamente a fumaça tóxica emitida pelo cigarro de fumantes incautos e, por que não dizer, mal-educados a ponto de não zelar pela qualidade do ar alheio. Apesar de ser uma droga lícita perpetrada por uma indústria multimilionária, o cigarro continua a ser grave problema de saúde pública.

O fumo passivo causa distúrbios de ordem neurológica, além dos já conhecidos problemas cardíacos e pulmonares

Dessa vez, um estudo da farmacêutica Larissa Helena Lobo Torres, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), constatou que o fumo passivo causa distúrbios de ordem neurológica, além dos já conhecidos problemas cardíacos e pulmonares.

Em seu doutorado, Torres analisou camundongos que foram expostos à fumaça do cigarro quando eram ainda bebês. Os resultados – que, é claro, não poderiam ter sido muito animadores – foram publicados em setembro no periódico Archives of Toxicology.

Tragada científica

A pesquisadora expôs os filhotinhos de camundongo à fumaça de cigarro duas vezes ao dia durante as duas primeiras semanas de vida. Eles inalavam o ar tóxico durante uma hora pela manhã (às 9h) e uma hora no período da tarde (às 16h). Graças a um sistema a vácuo, foi possível elaborar um ambiente no qual a fumaça era obrigatoriamente ‘tragada’ pelos animais.

Os bichos foram expostos ao que os pesquisadores classificam como ‘fumaça ambiental’ do tabaco. Trata-se de uma mistura: é a fumaça central (aquela tragada e expelida pelo fumante) somada à fumaça lateral (aquela produzida pela ponta acesa do cigarro). “É importante ressaltar que a fumaça lateral é mais tóxica; ela apresenta concentrações mais elevadas de nicotina, monóxido de carbono, amônia, aldeídos e substâncias cancerígenas”, lembra a orientadora do estudo, a farmacêutica Tania Marcourakis, da USP.

Criança e cigarro
Cerca de 40% das crianças em todo o mundo são regularmente expostos ao fumo passivo. (foto: Jesslee Cuizon/ Flickr – CC BY 2.0)

Durante os testes em laboratório, parâmetros neurológicos de cada camundongo foram avaliados em três momentos: na infância (aos 15 dias de vida); na adolescência (aos 35 dias); e na fase adulta (aos 65 dias).

Sistema nervoso comprometido

“A exposição induziu alterações críticas no desenvolvimento do sistema nervoso central dos animais”, constatou Torres. Memória e aprendizado foram algumas das atividades cognitivas comprometidas nos camundongos submetidos ao fumo passivo. Eles também apresentaram diminuição da atividade locomotora na infância e na adolescência.

Além disso, a fumaça de cigarro prejudicou o processo de mielinização – que é a formação da bainha de mielina, estrutura que protege os neurônios e facilita a comunicação entre eles. E provocou reveses na sinaptogênese – processo que resulta na formação das sinapses, que são, grosso modo, as conexões estabelecidas entre um neurônio e outro.

No caso dos camundongos, as duas primeiras semanas de vida são decisivas para os processos de sinaptogênese e mielinização. “Nossos dados sugerem que a maioria dos danos causados durante essa fase é irreversível”, preocupa-se Torres.

Sobre homens e roedores

“É difícil dizer que os mesmos danos causados em roedores ocorrerão também em humanos”, pondera a pesquisadora. Afinal, os processos de desenvolvimento neural são diferentes nas duas espécies.

Torres: “Nossos dados são condizentes com uma pesquisa que demonstrou que crianças e adolescentes expostos ao fumo passivo apresentam deficiência de aprendizado e pior desempenho escolar”

“Mas nossos dados são condizentes com uma pesquisa que demonstrou que crianças e adolescentes expostos ao fumo passivo apresentam deficiência de aprendizado e pior desempenho escolar”, considera Torres.

Outro trabalho científico que deu o que falar foi o do médico Douglas Levy, da Escola de Medicina Harvard. Seus dados, publicados em 2011 no periódico Pediatrics, indicam que crianças que moram com fumantes adoecem com mais frequência – notadamente em função de problemas respiratórios. E são, por isso, mais propensas a faltar à escola e assim ter seu aprendizado formal prejudicado.

Danos clássicos

É vasta a literatura científica dedicada ao fumo passivo e suas variadas consequências negativas para a saúde pública – não apenas no que se refere à saúde neurológica, mas também cardíaca e pulmonar.

“No curto prazo, a exposição involuntária ao tabaco pode acarretar reações alérgicas, como rinite, tosse, conjuntivite ou exacerbação de asma”, elenca Torres. “Em adultos expostos por longos períodos, são comuns quadros de infarto agudo do miocárdio, câncer de pulmão, enfisema pulmonar, bronquite crônica.”

Estatísticas ainda devem servir de alerta: segundo Torres, o tabagismo passivo aumenta entre 25% e 30% o risco de um não fumante sofrer infarto agudo do miocárdio e entre 20% e 30% o risco de desenvolver câncer de pulmão.

No Brasil, os dados mais recentes sobre tabagismo e fumo passivo são disponibilizados pelo serviço de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde. A última edição do levantamento é de 2013.

Confira o percentual de adultos fumantes nas capitais brasileiras, segundo o Vigitel

Os números atuais dizem que, dentro de casa, mulheres estão mais expostas que homens ao fumo passivo – como mostra o gráfico abaixo. “A frequência de fumantes passivos em domicílio foi de 10,2% da população, sendo este número maior entre mulheres (10,7%) do que entre homens (9,6%)”, comenta Torres.

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A boa notícia é que, de 2006 a 2013, o número de fumantes no país vem diminuindo. Consequentemente, espera-se que o tabagismo involuntário também siga tendência semelhante nos próximos anos. Mas o cenário ainda está longe de ser digno de comemoração. Segundo a OMS, o fumo passivo mata 603 mil pessoas anualmente em mais de 190 países. Nessa estatística, crianças compõem quase 30% das vítimas.

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line