Falsas esperanças

Todos os dias somos bombardeados com os resultados dos mais recentes e promissores estudos sobre o câncer. Novos medicamentos e terapias para a doença, testados em células e animais de laboratório, sugerem bons efeitos em humanos. O cenário esperançoso, no entanto, pode estar longe da aplicação clínica. Relatórios feitos por indústrias farmacêuticas mostram que grande parte dos resultados obtidos nessas pesquisas não pode ser replicada.

Há dez anos a empresa estadunidense de biotecnologia Amgen repete em seus laboratórios pesquisas publicadas em revistas científicas sobre o câncer consideradas inéditas e promissoras. O intuito é levá-las à fase de testes clínicos para, possivelmente, desenvolver novos medicamentos. 

Recentemente, a empresa divulgou um relatório mostrando que de 53 estudos testados no período, apenas seis tiveram seus resultados replicados e confirmados. “Mesmo sabendo das limitações de um teste pré-clínico, esse resultado é chocante”, diz o oncologista Glenn Begley, ex-coordenador do setor de pesquisas de câncer da Amgen, que comenta a questão na edição atual da revista Nature.  

De 53 estudos testados, apenas seis tiveram seus resultados replicados e confirmados

A replicação de estudos científicos reportados em publicações especializadas é a forma mais usual de validar os resultados de uma pesquisa. Ela é fundamental para corroborar os resultados do trabalho original. 

Os experimentos da Amgen não são os únicos a expor as fraquezas de pesquisas sobre câncer. No ano passado, um estudo conduzido por uma equipe alemã da empresa farmacêutica Bayer mostrou que apenas 25% de 47 pesquisas pré-clínicas sobre câncer publicadas em periódicos de alto impacto e testadas por eles puderam ser reproduzidas.

Acerto pelo erro

Segundo Begley, mais do que uma falta de precisão dos pesquisadores, o motivo de tamanho insucesso seria uma falha do sistema de publicação científica que valoriza o acerto em detrimento do erro. 

“Minha opinião é que o principal problema é a pressão que existe para que os pesquisadores publiquem apenas os resultados positivos”, defende o oncologista. “Para obter financiamentos e promoções, pesquisadores precisam de publicações que contem uma ‘história perfeita’. É tentador publicar apenas os dados que fecham com essa história, mas não há histórias perfeitas na biologia.”

Para o pesquisador, os erros e lacunas são oportunidades para novas pesquisas e, por isso, também deveriam ter espaço em artigos científicos. O médico oncologista brasileiro Andre Sasse, que mantém um grupo de discussão de estudos sobre câncer na Universidade de Campinas (Unicamp), concorda com o argumento, mas acredita que a introdução de resultados negativos nas publicações está longe da realidade.

“Os estudos clínicos com resultados positivos têm quatro vezes mais chance de serem publicados do que os que apresentam resultados negativos”, pontua. “Com os estudos pré-clínicos isso deve ser ainda pior, pois não existe a obrigação de registrar e reportar os erros.”

Sasse: “Os estudos clínicos com resultados positivos têm quatro vezes mais chance de serem publicados do que os que apresentam resultados negativos”

Sasse destaca ainda que esse problema não é exclusivo da oncologia. “Em todas as especialidades existe um pouco de otimismo e supervalorização dos resultados dos testes pré-clínicos”, afirma. “Esse otimismo é compreensível porque se os autores não forem mais sensíveis ao potencial de uma determinada droga, ela acaba sendo descartada, mesmo sendo promissora.” 

Para o médico, uma padronização do formato de publicação de pesquisas pré-clínicas seria uma boa solução para a questão. “Um mecanismo desses não iria diminuir a importância de substâncias e terapias potenciais e melhoraria a seleção de pesquisas que vão a testes clínicos”, explica.

E os pacientes?

A publicação de artigos ‘maquiados’, que reforçam apenas os resultados positivos de uma pesquisa, não só atrasa a aplicação prática de medicamentos, como prejudica diretamente os pacientes envolvidos em testes clínicos. 

Begley relata que algumas das pesquisas testadas pela Amgen já estavam sendo usadas como base para testes clínicos que, provavelmente, não tiveram resultados positivos para os pacientes. “Entendo que o sistema incentiva a publicação de qualquer maneira, mas devemos manter o foco na pesquisa do câncer para melhorar a vida dos pacientes”, defende.

Uma análise global publicada na revista Nature Reviews mostra que, por falta de rigor nas pesquisas pré-clínicas, o sucesso de testes clínicos de novas drogas contra o câncer com humanos caiu 10% no período de 2008-2010 se comparado ao de 2006-2007.

Atualmente, não existe obrigatoriedade de replicação para que um estudo pré-clínico siga para a fase de testes em humanos. A aprovação depende apenas da avaliação dos comitês de ética locais. 

Apesar dos riscos envolvidos na falta de repetição de um estudo, é cada vez mais comum que essa etapa seja pulada

Apesar dos potenciais riscos envolvidos na falta de repetição de um estudo, segundo Sasse, é cada vez mais comum que essa etapa seja pulada. “Se o estudo pré-clínico se mostrar promissor, parte-se direto para o estudo clínico”, diz. “Geralmente, são os próprios autores do estudo pré-clínico os primeiros a conduzir os testes clínicos e publicar os resultados, que geram mais aceitação na comunidade científica.”

Independentemente da discussão sobre regulação, Begley insiste no rigor do método científico e em sua minuciosa descrição como solução. “Embora nosso relatório seja assustador, continuo otimista e acredito que o método científico seja o único caminho de progresso nesse campo”, afirma. “Espero que os pesquisadores façam as mudanças necessárias em suas pesquisas e publicações para melhorar a reprodutibilidade dos experimentos. Afinal, são os pacientes que vão se beneficiar disso.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line