Flora brasileira resgatada dos cadernos de Saint-Hilaire

No Ano da França no Brasil, pesquisadores brasileiros homenageiam uma figura de destaque na cooperação científica entre os dois países: Augustin de Saint-Hilaire, naturalista francês que no século 19 coletou amostras botânicas pelo Brasil e registrou costumes e paisagens locais em seus escritos. As iniciativas, que resgatam a contribuição desse personagem para o conhecimento da flora nativa, incluem a inauguração de um herbário virtual com a coleção de Saint-Hilaire, além de um banco de dados de plantas medicinais e uma caminhada que reconstituiu os passos do botânico no país.

Cadernos de Saint-Hilaire
Cadernos e anotações de Saint-Hilaire integrantes do acervo do Museu Nacional de História Natural de Paris (foto: Sergio Romaniuc).

Em breve, toda a coleção de plantas reunidas por Saint-Hilaire durante sua viagem pela América do Sul, realizada entre 1816 e 1822, estará disponível para consulta on-line no Herbário Virtual A. de Saint-Hilaire. O projeto, fruto de uma parceria entre o herbário do Instituto de Botânica de São Paulo e o Museu Nacional de História Natural de Paris (MNHNP), contará também com imagens em alta resolução dos cadernos de campo do naturalista, suas anotações e fotos dos 30 mil exemplares de plantas enviados por ele ao MNHNP.

O herbário ainda não está pronto, mas já está disponível na internet um protótipo com nove cadernos de Saint-Hilaire, algumas notas, suas principais obras publicadas, ilustrações botânicas e imagens de espécimes. Por enquanto, o usuário só tem acesso à imagem das páginas manuscritas, mas o projeto prevê que todo o texto seja transcrito e traduzido para português e inglês. Na página do herbário, o usuário também encontra dados históricos e bibliográficos sobre Saint-Hilaire.

 

Primeiros registros

A coleção de Saint-Hilaire é o primeiro registro científico da flora brasileira. O francês foi um dos primeiros naturalistas a explorar o interior do país e fez as mais antigas descrições da flora do chamado sertão brasileiro, um território que englobava parte de Minas Gerais, Goiás e Bahia.

“Saint-Hilaire tem uma importância muito grande para o conhecimento da biodiversidade da mata atlântica e sua referência da flora da época é inestimável”, diz o botânico Sergio Romaniuc, coordenador brasileiro do projeto e pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo.

O estudo da coleção de Saint-Hilaire permitirá aos cientistas compreender as mudanças ocorridas na biodiversidade do país

Romaniuc explica que o estudo da coleção de Saint-Hilaire permitirá aos cientistas comparar a flora do início do século 19 com a atual para melhor compreender as mudanças ocorridas na biodiversidade do país. “Naquela época, provavelmente a flora deveria ser original. Hoje, ela passou por transformações e estima-se que tenha havido perda da biodiversidade”, afirma.

As amostras de Saint-Hilaire fazem parte da segunda maior coleção botânica reunida durante o século 19 na América do Sul. Romaniuc conta que os espécimes estavam espalhados entre as 11 milhões de espécies do acervo no Museu Nacional de História Natural de Paris.

O trabalho de catalogação e validação científica das informações está sendo feito pelo Instituto de Botânica de São Paulo e por pesquisadores franceses por meio de um sistema de banco de dados compartilhado. Qualquer alteração realizada, como a mudança do nome científico de determinada espécie, é atualizada instantaneamente para ser visualizada por qualquer usuário da página. A consulta pode ser feita pelo nome do gênero ou da espécie da planta ou pelo número do caderno em que ela é descrita.

Plantas coletadas por Saint-Hilaire
As pranchas com amostras de plantas e os manuscritos do naturalista francês foram digitalizados em alta resolução pelo Museu Nacional de História Natural de Paris (foto: Sergio Romaniuc).

 

Plantas redescobertas

Romaniuc conta que a coleção de Saint-Hilaire contém 3 mil espécies desconhecidas para a ciência. Grande parte das plantas coletadas pelo naturalista no início do século 19 já não existe ou não é mais reconhecida pelos brasileiros. Para resgatar o conhecimento sobre essas plantas, o Museu de História Natural e o Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) formaram em outubro uma caravana de pesquisadores que refez os passos de Saint-Hilaire pela região da Estrada Real, que liga Minas Gerais ao litoral do Rio de Janeiro.

A coleção de Saint-Hilaire contém 3 mil espécies desconhecidas para a ciência

No trajeto, os pesquisadores promoveram atividades culturais que retomavam o uso das plantas medicinais coletadas por Saint-Hilaire, como oficinas de remédios caseiros, exposições e distribuição de materiais didáticos. Também foi lançada a primeira edição traduzida para o português do livro Plantes Usuelles des Brésiliens, escrito por Saint-Hillaire em 1824.

“Saint-Hilaire deixou uma obra maravilhosa sobre a flora brasileira e preciosas informações sobre o uso das plantas medicinais nativas”, diz a pesquisadora Maria das Graças Brandão, coordenadora da Caravana Plantas Medicinais da Estrada Real – Seguindo as Pegadas de Auguste Saint-Hilaire. “Nosso objetivo foi recuperar o conhecimento sobre as plantas medicinais – porque ninguém mais conhece essas plantas – e devolver essa informação para a população da Estrada Real.”

Desde 2003, a pesquisadora coordena outro projeto, que visa disponibilizar na internet imagens e informações sobre plantas medicinais brasileiras citadas nas obras de naturalistas franceses. Para isso, foi criado o banco de dados Dataplamt, onde, por enquanto, estão catalogadas 200 espécies registradas nos diários de viagem de dezesseis naturalistas europeus, entre eles, Saint-Hilaire.

Brandão conta que os estudos do naturalista francês ainda se mantêm atuais e que, já no século 19, ele criticava a forma como os brasileiros tratavam o meio ambiente. “Quando Saint-Hilaire passou por aqui, ele falava claramente que, se a degradação continuasse, aquelas plantas que ele estava vendo iriam desaparecer”, diz a pesquisadora. E completa: “Tudo o que ele viu no século 19 é o que acontece ainda hoje: incêndios florestais e degradação.”

 

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line