As artimanhas do HIV já não são mais tão misteriosas. Dois artigos publicados hoje nas revistas científicas Nature e Science descrevem pela primeira vez a cadeia de eventos moleculares que ocorre num organismo infectado com o vírus da Aids e que leva à morte das células do sistema imunológico, caracterizando a doença. Os resultados mostram que tal processo está muito mais para suicídio coletivo do que para genocídio: o HIV estimula a ativação de proteínas ligadas à resposta imune, o que dispara um círculo vicioso de autodestruição dos linfócitos T CD4, componentes fundamentais de nosso sistema defensivo.
A descoberta abre novas possibilidades de terapia para a doença, que utilizem inibidores da ação dessas proteínas-chave para evitar a destruição do sistema imunológico – inclusive, os pesquisadores testaram, em laboratório, uma droga anti-inflamatória já existente, que conseguiu bloquear a morte celular.
Liderados por pesquisadores do Instituto Gladstone de Virologia e Imunologia, nos Estados Unidos, os estudos usaram tecidos linfoides extraídos do baço e das amígdalas para descobrir como era disparado o gatilho imunológico a partir da entrada do vírus nos linfócitos. É nesse tipo de tecido que o vírus se concentra na fase crônica da doença.
Eles identificaram, entre as proteínas celulares que interagiam com o HIV, uma com conhecidas propriedades ligadas a respostas imunes inflamatórias, a IFI16. Segundo os pesquisadores, quando detecta a presença do DNA viral no interior da célula, a IFI16 dispara a ação da enzima caspase-1, provocando um processo altamente inflamatório de morte celular programada denominado piroptose.
A piroptose é importante no combate, por exemplo, a infecções bacterianas, por reforçar as respostas defensivas do organismo e liberar citocinas pró-inflamatórias e sinais de perigo para o sistema imune. No caso do HIV, no entanto, ela alimenta um círculo vicioso: ao se autodestruir, os linfócitos T CD4 lançam sinais inflamatórios que atraem outros linfócitos, e o processo se repete. O ciclo de infecção, inflamação e morte celular acaba por destruir o sistema imunológico, caracterizando a Aids.
Estudos preliminares haviam identificado outra rota importante de morte celular relacionada ao HIV, na qual a atuação da enzima caspase-3 levava à autodestruição celular por apoptose. No entanto, as pesquisas atuais mostraram que essa via tem uma importância menor do que a da caspase-1.
“O processo de apoptose provocado pela caspase-3 destrói apenas os linfócitos ativos, nos quais o vírus completa seu desenvolvimento e passa a se replicar”, explica Warner Greene, diretor de pesquisa do Instituto Gladstone. “No entanto, esses são apenas 5% dos casos, nos outros 95% a infecção viral é abortiva, ou seja, as células detectam o vírus logo após sua entrada e se autodestroem, justamente através do mecanismo que descobrimos, o gatilho que ativa a caspase-1 e provoca a piroptose.”
Mudança de alvos
Os resultados abrem novas possibilidades terapêuticas: ao se descobrirem os gatilhos responsáveis pela resposta inflamatória ‘suicida’ na presença do HIV, seria possível tentar inibir esse processo para evitar a destruição do sistema imunológico e, com isso, o desenvolvimento da Aids. “Nesse caso, a intenção não seria suprimir o agente viral em si, como muitos antirretrovirais (ARVs), mas controlar a própria resposta do corpo ao vírus, bloqueando a via chave de inflamação e destruição celular associada à Aids”, esclarece Greene.
Gilad Doitsh, também pesquisador do Instituto Gladstone e coautor dos artigos, acredita que, quanto mais conhecermos os mecanismos de destruição associados à Aids, mais possibilidades de intervenção poderemos desenvolver. “Pense num carro que perde os freios”, exemplifica. “Você pode tentar pará-lo à força para evitar uma colisão ou dirigir para uma rota segura enquanto ele desacelera, opção que claramente representa uma possível terapia com inibidores de caspase-1.”
Uma questão importante é o que acontece com os linfócitos ‘abortivos’ tratados com inibidores de caspase-1. Livres da autodestruição, eles passariam a replicar o HIV em seu interior? “Nossos dados mostram que não”, afirma Greene. “Isso reforça o fato de que a piroptose inflamatória acaba não sendo uma medida de proteção nesse caso, mas uma via que só estimula a infecção pelo HIV e a destruição do sistema imune”, pondera.
Doitsh explica que a permissividade dos linfócitos T CD4 – que determina se o vírus consegue ou não infectar a célula para se reproduzir em seu interior – é mediada por mecanismos diferentes. Os linfócitos abortivos (95% do total) são não permissivos, mas acabam sendo levados à autodestruição pela ação da caspase-1. “Quando bloqueamos a morte celular inibindo a ação dessa enzima, o caráter não permissivo do linfócito não muda”, destaca. “Por isso, não observamos aumento na produtividade viral, ou seja, o vírus não se replica no interior desses linfócitos.”
Os pesquisadores já realizaram, inclusive, exames em laboratório com a VX-765, uma droga inibidora da caspase-1 já testada para casos de epilepsia crônica e psoríase. Os resultados sinalizaram a possibilidade de o medicamento prevenir a morte celular induzida. Agora, a equipe planeja fazer testes clínicos com essa ou outra substância similar, para descobrir se ela poderia impedir que pessoas contaminadas com o HIV desenvolvessem a Aids.
A existência de inibidores pode significar uma passagem mais rápida da pesquisa básica à clínica. Para Greene, essas drogas poderiam ser utilizadas sozinhas, por exemplo, no tratamento de milhões de pessoas que não têm acesso a antirretrovirais. “Como o alvo é o próprio organismo, elas não enfrentariam o problema de gerar resistência, como os medicamentos direcionados a combater o vírus”, pondera. “Também vejo aplicações no combate a infecções resistentes, em casos de progressão rápida da doença e combinada com outros ARVs para reduzir a inflamação persistente em pacientes com HIV, ligada ao aparecimento precoce de outros problemas, como demência e doenças do fígado.”
Vale destacar, no entanto, como lembram os pesquisadores, que muitos estudos complementares e testes clínicos ainda precisam ser feitos antes da aplicação, na prática, de tratamentos que visem à inibição da caspase-1.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line