É simbólico que o Dia Nacional da Consciência Negra não tenha como marco a assinatura da Lei Áurea, que acabou com a escravidão, mas não promoveu a justiça social no país. O dia 20 de novembro lembra, na verdade, a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. Muito mais do que um feriado prolongado, o dia simboliza uma luta secular por igualdade.
Apesar das recorrentes discussões e reafirmações científicas sobre a falta de evidências para a distinção de raças, esta ainda é uma questão política e social central no Brasil e no resto do mundo, como afirmaram os especialistas consultados pela Ciência Hoje On-line para celebrar a data.
O conceito de raças inexistia nas relações humanas de tempos remotos. Ele data de poucos séculos atrás. É contemporâneo do tráfico de escravos africanos para a América e está muito ligado aos esforços da ciência da época para catalogar o mundo.
Em especial no decorrer do século 19, o racialismo ou racismo científico, baseado em características morfológicas – como a cor da pele e o formato do crânio –, dividiu a humanidade em raças hierarquizáveis. Tal forma de pensamento atingiu seu ponto culminante com a ascensão do nazismo e da crença da superioridade ariana.
É evidente que, antes disso, o homem já guerreava, dominava e escravizava. Mas essas relações eram parte de um processo histórico e social de rivalidades entre grupos. “A ideia de superioridade racial naturalizou essas relações de exploração e dominação”, explica a antropóloga Lília Schwarcz, da Universidade de São Paulo. “Por isso, caiu como uma luva para justificar as novas relações de dominação que surgiam.”
A pesquisadora defende que, após a Segunda Guerra, a falta de evidências científicas acabou fragilizando o conceito biológico de raças humanas, mas a questão não perdeu sua importância social.
Com a palavra, a genética
Mas o que seria uma raça humana? Biologicamente, trata-se de um conceito taxonômico utilizado para caracterizar um grupo de indivíduos.“O isolamento causado pela migração de nossos antepassados pelos continentes levou realmente a uma diferenciação genética, mas, no caso humano, ela é bem menor do que seria necessário para afirmarmos a constituição de raças distintas”, explica o geneticista Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Trabalhos do também geneticista Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais – alguns dos quais já foram divulgados aqui na CH On-line e nas páginas da CH (exclusivo para assinantes) –, têm mostrado variações genéticas maiores dentro dos chamados ‘grupos raciais’ do que entre eles. Neles, Pena ressalta a impossibilidade de classificar geneticamente a população brasileira em raças. Para o pesquisador, cada um de nós é um ser único, diferente de qualquer outro.
Já para Salzano, se considerarmos como critério a ancestralidade geográfica, a existência de raças não pode ser reduzida à simples construção social. “É possível identificar grupos de marcadores genéticos capazes de distinguir populações da Europa, Ásia e África entre si, por exemplo, embora em países com maior miscigenação, como o Brasil e os Estados Unidos, isso seja difícil”, acredita. “A defesa de um conceito de raça apenas social foi adotada por pesquisadores após os horrores da guerra. Mas, se fosse assim, seria impossível distinguir os grupos uns do outros.”
O geneticista destaca, no entanto, que esses marcadores não estariam ligados apenas a características físicas e não justificariam qualquer tipo de preconceito. “Encontramos indivíduos com cor de pele diferente geneticamente associados à população do mesmo continente e vice-versa”, pondera. “Além disso, mesmo que essas diferenças possam indicar uma propensão maior de alguma população a certas doenças genéticas, por outro, não determinam méritos ou aptidões de seus membros. Não há justificativa para qualquer discriminação baseada nisso.”
Um olhar social
Independentemente do que diga a genética, o fato é que o racismo está fortemente presente na nossa sociedade e sempre deu o que falar – para o bem e para o mal. É no que acredita a antropóloga Lília Schwarcz. “De um lado, nossa cosmologia oficial inflaciona o lado exótico da mestiçagem, expresso na mulata, no carnaval e na capoeira”, avalia. “Mas, por outro, exotiza a pobreza ou vincula as favelas, as drogas e a violência aos negros, maneiras de ‘naturalizar’ desigualdades que não são biológicas, mas históricas, sociais e culturais.”
Para Schwarcz, o Brasil ainda apresenta fortes práticas discriminatórias e o tema é arena de importantes e atuais disputas políticas e sociais. “Temos uma combinação de inclusão com exclusão às vezes muito perversa. Se compararmos quaisquer indicadores nacionais, sejam relativos a trabalho, renda ou mortalidade infantil, há sempre uma diferença entre brancos e negros”, afirma. “A própria forma de designar esses grupos é social, reflete uma escolha política não neutra, por isso agenciamos e mudamos cores no Brasil.”
A antropóloga destaca o agenciamento do conceito de raça promovido pelos próprios movimentos afirmativos dos direitos e da cultura negra, como as políticas de cotas nas universidades e concursos públicos. “Nesse sentido, raça, assim como sexo, funciona como um marcador social de diferença, que pode ser mobilizado para agregação e reconhecimento”, avalia. Na opinião da pesquisadora, “as cotas são importantes num país que pratica um preconceito dissimulado, promovem a reflexão”.
Salzano é mais ponderado nessa questão: “As cotas devem ser pensadas com cuidado, pois a constituição garante a não discriminação por raça, sexo ou religião e, ao favorecer um grupo, desfavorece outro. Não é fácil encontrar um equilíbrio”.
Mas Schwarcz também faz ressalvas. Para a antropóloga, as ações de afirmação coletiva precisam ser mais amplas do que as políticas de cotas. Elas devem passar pelo processo educativo e por sua aplicação como prática cidadã. “Pode parecer inocente que crianças negras queiram ser a Branca de Neve, mas isso levanta várias questões: por que não contar outras histórias? Por que não valorizar outros modelos? Por que não apresentar, além da história da Europa e da América, a da África? Há muitas possibilidades de políticas afirmativas, todas importantes expressões de cidadania.”
Uma boa opção para saber mais sobre os conhecimentos genéticos relacionados à discussão racial é a exposição ‘Revolução Genômica’, em cartaz no Palácio Anchieta, em Vitória, no Espírito Santo. A mostra, organizada pelo Instituto Sangari e pelo Museu de História Natural de Nova Iorque, apresenta a trajetória da pesquisa na área, com destaque para o desenvolvimento do Projeto Genoma, no final da década de 1990. Ela também aborda questões centrais para a pesquisa atual, como as terapias genéticas e a clonagem, além de contar com atrações interativas, como o Genomômetro, que permite comparar a semelhança genética entre seres vivos, e o Faça o seu Transgênico, que permite construir virtualmente um organismo geneticamente modificado. ‘Revolução Genômica’ fica em cartaz no Palácio Anchieta até 9 de dezembro. O espaço está aberto à visitação de terça a sexta-feira, das 8h às 18h, e, nos sábados e domingos, das 9h às 17h.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line