Imagens distorcidas

Mulher lendo, tela de 1935 do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973).

A literatura brasileira atual reflete as características machistasainda muito presentes na nossa sociedade. Uma análise da construção daimagem da mulher em romances publicados por três grandes editoras doBrasil mostra que o sexo feminino é constantemente sub-representado ouestereotipado nos livros escritos por homens. O estudo, feito porpesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), constata ainda que asmulheres são minoria entre os escritores.

Ao todo, foram avaliados 258 romances publicados pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco no período de 1990 a 2004. Para uma análise mais detalhada das obras, os pesquisadores traçaram o perfil físico e psicológico das personagens e identificaram sexo, nível social, profissão, etnia, religião e posições políticas, entre outras características.

O estudo, coordenado pela professora Regina Dalcastagné, do Instituto de Letras da UnB, revelou que apenas 30% dos livros analisados foram escritos por mulheres, o que evidencia a predominância masculina na literatura. Isso faz com que os problemas femininos sejam abordados sob uma perspectiva diferente, alinhada com as experiências de vida dos homens.

A menor presença das mulheres entre os escritores se reflete também em uma menor visibilidade do sexo feminino nas obras. A pesquisa, que contou com a participação de 15 alunos de graduação do Instituto de Letras da UnB, mostrou que menos de 40% das personagens eram do sexo feminino.

“Além de serem minoritárias nos romances, as mulheres também têm menos acesso à voz, isto é, à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas das histórias”, acrescenta Dalcastagné. Segundo ela, o espaço conquistado pelas mulheres após o movimento feminista pode ter desestimulado os homens a retratarem uma realidade que não é sua.

Diferenças irreconciliáveis
Os romances escritos por homens diferem significativamente daqueles escritos por mulheres, principalmente quanto à representação feminina. Para avaliar o perfil de cada personagem, elas foram divididas em brancas e não-brancas, pois a etnia é considerada um fator determinante para a caracterização física e psicológica.

Do total de 1.245 personagens femininas analisadas, 94% eram mulheres brancas. Em narrativas de autoria feminina, as mulheres são representadas em diferentes faixas etárias, da infância à velhice. Elas são mais independentes, têm formação superior e sua principal característica é a inteligência. Já as personagens femininas das obras escritas por homens são em sua maioria jovens e adultas e têm como principal atrativo a beleza. Nesses romances, as mulheres também são menos escolarizadas e dominam menos a norma culta da língua.

O estudo mostrou que as mulheres costumam construir representações femininas mais complexas e plurais, em que suas personagens têm diferentes experiências de vida e geralmente estão insatisfeitas com alguma situação pessoal ou profissional em que se encontram.

“Nas narrativas masculinas, as mulheres em sua maioria são representadas como donas-de-casa dependentes econômica e psicologicamente de seus maridos, satisfeitas com sua pacata vida, enquanto os homens aparecem como indivíduos independentes e com interesses diversos, além de mais conectados com a realidade à sua volta e com outras pessoas”, analisa Dalcastagné.

A pesquisadora destaca ainda que o perfil das personagens revela uma desproporção étnica. Apenas 6% das personagens analisadas eram mulheres não-brancas e somente uma negra desempenhava o papel de narradora. “Esses números são congruentes com o perfil do escritor e da escritora brasileiros, que são, em sua quase totalidade, brancos”, justifica. Ela afirma que, na maioria dos romances, a representação dos negros é perversa. “Homens negros geralmente são retratados como bandidos e mulheres como empregadas.”

Em relação a assuntos polêmicos, como aborto, homossexualismo, problemas com fertilidade e violência doméstica, Dalcastagné conta que eles pouco apareceram nos romances analisados. “Esses temas são igualmente silenciados tanto por homens como por mulheres”, ressalta. 

Rachel Rimas
Ciência Hoje On-line
06/02/2008