Informar ou não informar, eis a questão

Sua família tem histórico de uma doença genética e hereditária e você decide investigar se também tem chance de desenvolver o mesmo mal. O médico lhe orienta a fazer um teste de mapeamento do DNA em busca de mutações que indiquem o seu risco. No mesmo exame ou com análises complementares é possível ver marcadores para outras doenças. Você gostaria de saber que outros riscos está correndo? O médico tem o dever de te informar? Ele pode investigar outras doenças sem que você tenha pedido?

Essas perguntas ficarão cada vez mais rotineiras com a popularização de testes para detectar indícios genéticos associados a doenças neurodegenerativas, câncer, complicações cardiovasculares e outras. 

A partir de material genético de um indivíduo em amostras de sangue ou saliva, esses testes conseguem identificar falhas e erros na ordem de suas bases nitrogenadas – as ‘letras’ que compõem o DNA. A troca ou o sumiço de uma dessas ‘letras’ em determinados genes indica um risco de desenvolver certas doenças que pode ser passado de pais para filhos.

Apesar de ainda serem caros e não estarem disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) – com a exceção de alguns hospitais universitários –, tais exames podem ser feitos, com prescrição médica, em laboratórios brasileiros, muitos dos quais são cobertos pelos planos de saúde particulares.

Não existe no país regulamentação sobre testes genéticos com fins diagnósticos

Ainda assim, não existe no país regulamentação sobre como os geneticistas, médicos e laboratórios devem proceder em relação a testes genéticos com fins diagnósticos. Há apenas recomendações da Associação Médica Brasileira e uma resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre pesquisas genéticas, que não inclui o uso dos testes na clínica médica. Na falta de diretrizes próprias, exemplos de outros países podem ser uma alternativa para a discussão.

Dever de informar

Nos Estados Unidos, o Colegiado Americano de Medicina Genética e Genômica (ACMG, na sigla em inglês) lançou recentemente um relatório com novas recomendações sobre os testes genéticos para laboratórios e médicos sobre os testes genéticos que mapeiam o DNA – o teste de genoma, que analisa todo o DNA, e o de exoma, que investiga o DNA ativo. O primeiro é raro e não está disponível clinicamente no Brasil, mas o segundo já é oferecido aqui por cerca de 13 mil reais. 

A ACMG orienta que, quando o paciente se submeter a um desses testes, o médico procure por mutações mesmo que não estejam relacionadas à doença de interesse do paciente. Se o sujeito pedir um teste para procurar marcadores para câncer, por exemplo, o recomendado é que o laboratório também procure por mutações ligadas a outras doenças e que o médico informe ao paciente caso ele tenha esses marcadores.  

A instituição lista um grupo de 57 mutações sabidamente ligadas a condições graves, com tratamento e prevenção conhecidos, que devem sempre ser investigadas em detalhe pelos laboratórios e incluídas no laudo entregue ao médico. 

Probabilidade
Os testes genéticos identificam mutações que indicam os riscos de uma pessoa vir a desenvolver certas doenças. Novas recomendações americanas propõem que determinadas mutações sejam sempre investigadas. (imagem: WikiCommons/Sofia Moutinho)

O principal autor do relatório que traz as novas recomendações, o geneticista Robert Green, reconhece que com isso os testes podem ficar mais caros, mas acredita que a medida vai trazer benefícios para médicos e pacientes.

“O nosso genoma tem um potencial enorme de fornecer informação sobre doenças raras e comuns, mas tem sido difícil estabelecer quais descobertas devem e quais não devem fazer parte do relatório médico”, diz Green. “Nossas recomendações facilitam essa escolha ao listar algumas mutações e genes que, se identificados, têm forte impacto positivo na saúde dos pacientes e suas famílias, que poderão monitorar e evitar algumas doenças.”

Mas as recomendações têm causado debate nos Estados Unidos. Em artigo publicado na revista Science, a especialista em direito e medicina Susan Wolf, da Universidade de Minnesota, defende que a medida é uma ameaça à liberdade de escolha dos pacientes. Na sua interpretação, as novas diretrizes retiram do paciente o direito de escolher a que exame vai ser submetido e de não saber sobre uma condição qualquer para a qual não pretendia ser testado. 

“As situações em que os médicos podem testar sem o consentimento do paciente são raras exceções, apenas quando a vida do paciente está comprometida, ele está inconsciente e não há ninguém para consentir”, pondera. “Esse não é o caso dos sequenciamentos genéticos. Os pacientes têm o direito de recusar testes médicos não desejados e a informação que os testes podem gerar, mesmo que essa informação ofereça um benefício.”

Joffe: “A decisão do escopo de análise é do médico, ele é quem tem a expertise para saber que análises clínicas são benéficas para o paciente”

Já o oncologista Steven Joffe, do Instituto do Câncer Dana-Farber, que também assina um artigo de opinião sobre o assunto na Science, acredita que as recomendações não ferem a liberdade do paciente. Segundo o médico, tudo se resolve por meio de um aconselhamento em consulta informando ao paciente as possibilidades de resultados, tratamento e monitoramento.

“A decisão do escopo de análise é do médico, ele é quem tem a expertise para saber que análises clínicas são benéficas para o paciente”, afirma. “Se um paciente está sendo avaliado para uma condição cardíaca por meio de um teste genético e o laboratório encontra indicação de predisposição para o câncer, o paciente deve ser comunicado e isso não é testar sem consentimento; o paciente consente quando aceita fazer o teste.”

Direito de não saber

A oncogeneticista Maria Isabel Achatz, do Hospital AC Camargo, em São Paulo, está de acordo com a recomendação americana. “Podendo ter informações sobre outras doenças, é um absurdo não contar ao paciente e deixar de informar que ele pode fazer alguma coisa pela sua saúde.”

Achatz assinala, contudo, que o paciente tem o direito de se negar a saber o resultado do teste. A médica já passou por essa experiência na clínica, quando uma paciente fez um teste para detectar mutações ligadas ao câncer e desistiu de saber o resultado. 

Para a geneticista, cada caso tem que ser avaliado levando-se em conta os benefícios e danos para o paciente e sua família. No caso de detecção de uma mutação que coloca em risco os parentes do paciente, que podem compartilhar dos mesmos marcadores genéticos, Achatz acredita que é dever do médico, se solicitado, informar à família. 

“Encontro em um paciente uma mutação VHL, que proporciona 100% de chance de desenvolver tumores até os 50 anos, e ele diz que não quer que ninguém saiba que ele tem essa mutação”, supõe a geneticista. “Se os pais dele ou os filhos me procurarem, eu posso entrar com um processo junto ao Conselho Regional de Medicina para que os parentes saibam e comecem a monitorar o desenvolvimento do câncer.”

De opinião diferente é o também oncogeneticista José Cláudio Casali, do Hospital Erasto Gaertner e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, que já passou por situação parecida e não revelou o resultado do teste aos parentes a pedido do paciente. Casali frisa que o código de ética médico brasileiro prioriza o direito do paciente sobre o da família.

Família
Segundo o oncogeneticista José Cláudio Casali, o código de ética médico brasileiro prioriza o direito do paciente sobre o da família. ‘O médico não pode passar por cima da decisão do paciente e informar à família’, defende. (imagem original: jayanta behera/ Sxc.hu)

“O médico não tem o direito de introduzir uma informação para um paciente que não quer saber, que muitas vezes não se sente preparado, nem pode passar por cima da decisão do paciente e informar à família”, diz. “A decisão do paciente tem que ser respeitada até porque não se sabe se a mutação vai ou não expressar a doença. A genética não é determinística e a percepção de risco é muito pessoal. Quando falo que um paciente tem 80% de chance de desenvolver uma doença, ele pode pensar que está entre esses 80% ou entre os 20%.”

Achatz lembra, no entanto, que os testes genéticos mais completos ainda são uma novidade na clínica brasileira. “O teste do exoma traz uma situação completamente nova; temos que rever todo o código ético em relação aos testes genéticos”, afirma.

Achatz: “O teste do exoma traz uma situação completamente nova; temos que rever todo o código ético em relação aos testes genéticos”

Além da discussão sobre os limites de decisão do médico e do paciente, os testes genéticos abrem espaço para outros debates, como a seleção genética em caso de exames feitos em fetos e a discriminação que pode haver caso as informações dos pacientes cheguem às empresas de seguros de saúde e vida.

“Essa é uma discussão que temos que levar adiante, é muito importante que haja regulamentação sobre a genética clínica”, defende Casali. “O Brasil é pioneiro em priorizar a escolha do paciente em pesquisas genéticas, nas quais o paciente tem o direito de escolher para que será usado o material genético que doa e que tipos de resultados quer receber. Mas falta ainda uma decisão para a clínica.”

Duas opções
Existem diversos tipos de e metodologias usadas em testes genéticos para detectar mutações ligadas a doenças. Normalmente, dentro desse universo, o médico tem duas opções gerais: pedir um teste para investigar uma região específica do DNA ou um teste de exoma, que examina simultaneamente todos os 20 mil genes ativos do genoma humano. Um exemplo de teste específico é o para detectar mutações nos genes BRCA1 e BRCA2, ligados ao câncer de mama e ovário. Esse tipo de teste tem maior eficácia do que o de exoma. Por analisar um escopo muito amplo, o teste de exoma está mais suscetível a falsos positivos e negativos, mas oferece uma visão geral do genoma e pode revelar mutações que não seriam encontradas em teste específico. Para câncer de mama, por exemplo, são conhecidos outros 20 genes que podem ser investigados com o exoma. Esse teste é oferecido por laboratórios no Brasil, mas seu processamento é complexo e conduzido só fora do país.


Sofia Moutinho

Ciência Hoje On-line