Inimigo íntimo

Ironias da natureza: um estudo brasileiro realizado no Pantanal indica que a sobrevivência das araras-azuis, espécie ameaçada de extinção, depende indiretamente do principal predador de seus ninhos – o tucano-toco. Esse animal é um dos maiores dispersores das sementes de manduvi, árvore que serve de abrigo para os ninhos das araras.

A conclusão foi tirada por um estudo feito por Marco Aurélio Pizo, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), e colaboradores. O resultado mostra como existem na natureza relações muito sutis entre as espécies que nem sempre são facilmente percebidas pelos pesquisadores, mas podem estar fortemente ameaçadas pela ação humana.

A pesquisa foi realizada na região da Fazenda Rio Negro, em Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2002 e 2007. Os pesquisadores visavam inicialmente estudar a relação entre frutos da região do Pantanal com animais dispersores de sementes, e descobriram esta curiosa ligação entre as três espécies. Os resultados finais do estudo foram publicados na última edição da revista Biological Conservation.

Também assinam o artigo Neiva Maria Guedes, da Universidade para o Desenvolvimento do Estado e Região do Pantanal (Uniderp), Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, e Camila Donatti, da Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA).

Dieta restrita

As araras-azuis têm hábitos que aumentam consideravelmente seu risco de extinção: alimentam-se de apenas dois tipos de frutos e constroem seus ninhos predominantemente em buracos já existentes no tronco de manduvis (foto: Wikimedia Commons).

As araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) têm hábitos muito específicos, o que aumenta consideravelmente seu risco de extinção. Essa espécie se alimenta de apenas dois tipos de frutos e constrói seus ninhos predominantemente em buracos já existentes no tronco do manduvi (Sterculia apetala). Esses buracos também são abrigo para mamíferos, insetos e outros pássaros, o que acarreta uma competição entre essas espécies.

“O manduvi é encontrado apenas em áreas de floresta, que cobrem 6% da vegetação total do Pantanal”, afirma o biólogo Marco Pizo. “Além disso, apenas manduvis com mais de 60 anos possuem buracos suficientemente grandes para que as aves possam fazer seus ninhos.”

Embora os manduvis estejam entre as árvores mais altas do Pantanal, com altura em torno de 20 a 35 metros, os ninhos das araras não estão completamente livres dos predadores. Durante os anos de 1999 e 2003, a bióloga Neiva Guedes escalou manduvis para analisar quase 300 ninhos de araras-azuis. Nos locais onde havia ocorrido a ação de predadores, ela analisou vestígios como pêlos, penas e marcas, e constatou que os tucanos-toco foram responsáveis por 53% dos ovos destruídos.

Principais dispersores
Os tucanos-toco (Ramphastos toco) também se alimentam dos frutos do manduvi. Porém, ao contrário da maioria das outras aves que comem as sementes desse fruto, o tucano consegue ingeri-las inteiras e espalhá-las por uma extensa área. Esses animais percorrem grandes distâncias em campos abertos entre uma área de floresta e outra, garantindo uma dispersão eficiente para o manduvi. Dessa forma, a reprodução das araras-azuis está indiretamente ligada à relação entre o tucano-toco e o manduvi.

Essa relação está seriamente ameaçada pelo desmatamento e pela expansão dos pastos na região, principalmente porque as araras-azuis dependem das árvores mais antigas para se reproduzir. Segundo Pizo, os hábitos muito específicos dessa ave preocupam os pesquisadores. “A arara-azul é um animal ‘próprio’ para ser ameaçado”, afirma. “Esse grupo está bastante reduzido e já está extinto em diversas regiões. Mas essa espécie está se recuperando na região do Pantanal, graças a esforços de conservacionistas e proprietários de fazendas da região.” 

Igor Waltz
Ciência Hoje On-line
05/05/2008