Mais perto da leitura de mentes

 

Na ficção científica a leitura de mentes é um dom comum, graças a poderes mutantes ou maravilhas tecnológicas. Fora dela, essa habilidade parece fora de cogitação ‐ mas aos poucos vai se tornando viável. Dois artigos publicados na Nature Neuroscience de abril mostram que a ciência começa a entender como a percepção se traduz na atividade cerebral.

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A leitura de mentes é um dom recorrente na ficção científica, como no caso do personagem Professor Xavier, no filme X-Men (foto: reprodução).

Os dois estudos foram feitos com experimentos simples, que analisaram o funcionamento do cérebro de algumas pessoas com aparelhos de ressonância magnética funcional. Em um caso, esses registros permitiram que os cientistas apontassem a imagem percebida por cada voluntário dentro de um conjunto limitado. No outro estudo, os pesquisadores conseguiram mostrar que o cérebro dos voluntários havia processado imagens subliminares que os participantes sequer haviam percebido conscientemente.

 
Os estudos analisaram a atividade das áreas visuais do cérebro (em especial o córtex visual primário), que recebem as informações captadas pelos olhos e são responsáveis pela identificação de cores, formas etc. O funcionamento dessas regiões foi monitorado enquanto os participantes observavam figuras simples.
 
null No primeiro estudo, assinado por Yukiyasu Kamitani, do Laboratório de Neurociência Computacional ATR (Japão), e Frank Tong, da Universidade de Princeton (EUA), foram apresentadas aos voluntários figuras com linhas inclinadas em oito orientações diferentes, como na ilustração ao lado. O experimento revelou pequenas variações na atividade cerebral dos participantes, de acordo com a orientação da figura mostrada. Essa diferença foi usada para alimentar um programa decodificador capaz de determinar qual a figura
observada a partir do padrão de ativação cerebral registrado
pela ressonância magnética.
 
null Com esse programa, os cientistas conseguiram acertar em cerca de 80% dos casos a orientação das linhas que recebiam a atenção dos voluntários, ao observarem figuras que misturavam linhas orientadas em duas direções diferentes (ver figura ao lado). Quando os cientistas pediam aos participantes que se concentrassem em apenas uma dessas direções, sua atividade cerebral acusava apenas o registro dessas linhas ‐ como se as outras não estivessem na figura. Esse estudo traz assim a primeira evidência científica da importância da concentração na percepção de estímulos visuais já no córtex visual primário humano.
 
No outro estudo, John-Dylan Haynes e Geraint Rees, pesquisadores da University College London (Inglaterra), apresentaram aos voluntários duas imagens em sucessão rápida. A primeira era exibida durante um intervalo de tempo muito curto (17 ms) e era substituída por uma outra, com um padrão similar, mostrada durante quase 15 s. Embora estivessem cientes de que foram submetidos a duas imagens distintas, nenhum dos participantes afirmou ter percebido a primeira. No entanto, o mapeamento de sua atividade cerebral constatou alterações que indicam que o cérebro respondeu ao estímulo.
 
Essa é a primeira evidência científica de que o cérebro processa as chamadas imagens subliminares, recebidas sem que sejam percebidas conscientemente. Porém, a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pondera que esse resultado não deve ser usado para alimentar o temor de propagandas subliminares e outras teorias conspiratórias: “há uma grande distância entre detectar o estímulo e ser influenciado por ele”.
 
Suzana relativiza também o significado dos resultados obtidos nesses estudos. “Os dois artigos mostram que a leitura da mente é uma realidade. No entanto, somente padrões muito simples podem ser lidos e as dificuldades técnicas ainda são enormes”, ressalta. Um dos maiores obstáculos é a singularidade do cérebro, que impossibilita o estabelecimento de padrões de atividade cerebral mais gerais: os programas utilizados nesses estudos tinham que ser alimentados previamente com dados da atividade cerebral de cada voluntário e só serviam para “ler” a mente daquele indivíduo. Os experimentos realizados mostram que, embora avanços estimulantes tenham sido obtidos, ainda está longe o dia em que ler mentes será tão simples quanto na ficção.


Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line
06/05/05