Mais polêmica viral?

Em 2012, a polêmica gerada por pesquisas que visavam criar cepas do influenza H5N1 – o chamado vírus da gripe aviária – capazes de ser transmitidas entre mamíferos levou a comunidade científica a convocar uma paralisação voluntária desses trabalhos.

Dois anos depois, novos estudos, agora com o influenza H1N1, vírus que provocou uma pandemia e espalhou pânico em 2009, ganham repercussão por fazer algo parecido: estudar linhagens capazes de escapar do sistema imunológico humano. A pesquisa, cujos resultados ainda não foram publicados, teve detalhes revelados em tom de alarme pelo jornal britânico The independent, mas pesquisadores brasileiros acreditam que pode ser importante para o aprimoramento de vacinas e a prevenção de novas epidemias.

Kawaoka afirma que seu objetivo não é produzir supervírus, mas prever mutações que poderiam ocorrer no ambiente e tornar o H1N1 uma ameaça

No estudo atual, realizado pelo virologista japonês Yoshihiro Kawaoka, da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos, o vírus de 2009 foi manipulado geneticamente para que pudesse ‘escapar’ do controle dos anticorpos de nosso sistema imune – ou seja, foram criadas variantes contra as quais não houvesse imunidade induzida por qualquer vacina utilizada hoje contra a influenza A (H1N1). “No caso da emergência de uma dessas mutações como dominante entre as cepas circulantes do vírus, haveria o risco de uma nova epidemia, pois não haveria a barreira da imunidade contra elas, como um vírus que nunca teve contato com o homem”, explica o especialista.

Kawaoka afirma que seu objetivo não é produzir supervírus, mas prever mutações que poderiam ocorrer no ambiente e tornar o H1N1 uma ameaça. “Os vírus influenza estão constantemente mudando na natureza e eventualmente essas alterações podem levar à emergência de uma variante dominante que não seja prevenida pelas vacinas atuais”, diz o japonês. “A ocorrência de uma porcentagem de mutações que naturalmente escapam do nosso sistema imune é reportada todos os anos, o que não quer dizer que elas tenham o necessário para se tornar dominantes, já que há outros fatores envolvidos.”

Pequenas alterações

Embora explique que ainda não pode apresentar detalhes da pesquisa, uma vez que ela ainda será publicada em revistas científicas, Kawaoka diz que identificou mudanças em uma proteína de superfície viral chamada hemaglutinina. “Quando entra em contato com anticorpos humanos, esse é o principal alvo atacado por nossas defesas, o que pode levar à ocorrência de mutações”, esclarece a virologista brasileira Helena Ferreira, da Universidade de São Paulo. “Assim como outros vírus de RNA, o vírus de influenza não possui enzimas que reparam as mutações do genoma, por isso, observamos diferentes populações após infecções naturais e é esse processo que foi reproduzido em laboratório, com a seleção das que escapavam de nosso sistema imunológico.”

O trabalho pode ter uma aplicação direta no desenvolvimento de novas vacinas, ao selecionar variantes que poderiam causar um futuro surto, epidemia ou pandemia. “É muito útil o reconhecimento constante da presença de variantes virais resistentes aos antivirais em uso para os diferentes alvos, o que leva à procura constante de novas drogas que sejam capazes de controlar a infecção e à composição de uma futura vacina”, diz o virologista brasileiro José Nelson Couceiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

As alterações naturais em um vírus como o H1N1 podem levar, segundo Kawaoka, à seleção de uma nova variante vacinal a cada 3 ou 5 anos, para acompanhar a cepa dominante em circulação. “O que estamos fazendo experimentalmente em laboratório está ocorrendo na natureza, estamos tentando antecipar as direções em que o H1N1 pode evoluir para nos mantermos à sua frente e produzir vacinas mais eficientes”, afirma.

Vacina
Antecipar experimentalmente em laboratório as alterações naturais que o H1N1 pode sofrer ajudará no desenvolvimento de vacinas mais eficientes contra o vírus. (foto: U.S. Army Corps of Engineers Europe District/ Flickr – CC BY 2.0)

Ferreira destaca que esse tipo de alteração pontual na proteína de superfície do vírus não está necessariamente ligada à alteração direta de sua letalidade. “Não teríamos resposta imuneadpatativa, anticorpos, para combatê-lo, mas não estaríamos totalmente desprotegidos, pois o organismo também possui resposta inata, que é inespecífica”, pondera. “O impacto das mutações poderia ser maior em pessoas imunossuprimidas, que não conseguem modular uma resposta imunológica eficaz, e uma vacina baseada nessas mutações seria importante para esses indivíduos, principalmente.”

Abordagem sensacionalista

A divulgação dos estudos com o H1N1 pode reacender os debates sobre esse tipo de pesquisa. Kawaoka prefere não entrar em polêmica sobre o assunto, mas classifica o artigo do jornal britânico como “sensacionalista”. Ele reafirma a importância e a segurança das pesquisas e lamenta a abordagem muitas vezes adotada pela mídia para tratar o tema.

“Há uma tendência da imprensa em tratar esse tipo de assunto, uma pesquisa ainda não publicada, de forma sensacionalista”, diz. “Muitos avanços científicos no controle de agentes patogênicos só foram realizados com pesquisas conduzidas com os próprios patógenos e acredito que nossa melhor opção é aprender o máximo possível com os vírus influenza para nos prepararmos melhor contra futuras epidemias ou pandemias.”

Kawaoka: “Nossa melhor opção é aprender o máximo possível com os vírus influenza para nos prepararmos melhor contra futuras epidemias ou pandemias”

Um dos pontos destacados pelo The independent foi a utilização de laboratórios de nível de biossegurança 2 (em uma escala que vai de 1a 4) para realizar as pesquisas. Ferreira enfatiza que esse tipo de trabalho, apesar de muito importante, precisa ser realizado de forma responsável. “Aqui no Brasil, a manipulação de H1N1 pode ser realizada em um laboratório de nível 2, com alguns cuidados adicionais, como equipamentos de proteção individual e coletiva, descarte e armazenamento adequados”, explica. “Pela nossa legislação, o único vírus influenza que precisa ser manipulado em laboratórios de nível 3 é o H5N1.”

Couceiro destaca a grande produção científica e as cooperações internacionais do laboratório norte-americano para dar um voto de confiança ao colega. Para o brasileiro, embora o trabalho possa representar algum perigo em casos de escape acidental ou ações de bioterrorismo, é importante para a ciência. “Acho que a imprensa cumpre o seu papel de divulgar e o sensacionalismo seria reduzido se a mídia fosse mais bem informada”, avalia. “A crítica destrutiva a um trabalho não leva a lugar algum; precisamos promover encontros científicos, apresentar pontos de vista, questionar e escutar, isso com certeza levará a um melhor resultado para a ciência.”

O episódio relembra as muitas críticas surgidas em 2012 sobre os estudos com cepas variantes do H5N1 capazes de ser transmitidas entre mamíferos (o chamado vírus da gripe aviária possui alta taxa de mortalidade, mas uma disseminação difícil de pessoa a pessoa – até hoje, só houve uma ocorrência desse tipo registrada, as demais infecções aconteceram por contato com pássaros domésticos ou selvagens). A discussão levou à interrupção voluntária dos estudos, para que a comunidade científica e a sociedade pudessem discutir sua pertinência e sob quais condições deveriam ocorrer.

Kawaoka foi um dos pesquisadores que interromperam seu trabalho com o H5N1 na ocasião. Retomadas após cerca de um ano, as pesquisas do japonês mostraram que a ocorrência de quatro mutações na proteína hemaglutinina poderia tornar o vírus transmissível entre furões pela respiração. “É um resultado fundamental por comprovar que o H5N1 possui um potencial pandêmico, já que muitos estavam começando a duvidar disso, o que ameaçava fragilizar nossas medidas de precaução contra o vírus”, pondera. “Agora estudamos os fatores que influenciam essa capacidade, para avaliar o risco do aparecimento de vírus emergentes com tais mutações funcionais.”

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line