Mania de problema?

Uma série de reportagens, livros, filmes e mesmo testes de revistas abordando transtornos psiquiátricos vem intensificando o debate sobre o tema, que ainda representa um grande desafio para a ciência e a sociedade. Apesar da atual superexposição, especialistas defendem que o interesse do público pelos ‘males da mente’ é antigo; o que muda são as novas ferramentas de disseminação e as formas de perceber e lidar com o tema.

“Os seres humanos sempre tiveram curiosidade e receio em relação aos transtornos psiquiátricos”, afirma o psiquiatra Antonio Egídio Nardi, professor no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ipub/UFRJ). “Há casos dos séculos 18 e 19 em que alguns hospitais psiquiátricos colocavam seus pacientes em jaulas para as pessoas visitarem.” 

“Assim como temos doenças no coração, metabólicas, renais, gastrointestinais; temos doenças no cérebro também, que são os transtornos psiquiátricos”

Mas muito mudou no campo da psiquiatria desde essa época, inclusive a preocupação dos médicos, que hoje é divulgar de forma mais clara o que são os transtornos psiquiátricos, os avanços nos tratamentos e também tirar o estigma dessas doenças, que ainda são vistas com preconceito. “Assim como temos doenças no coração, metabólicas, renais, gastrointestinais; temos doenças no cérebro também, que são os transtornos psiquiátricos”, ressalta Nardi.

Para o comunicólogo Ericson Saint Clair, pós-doutorando da UFRJ que desenvolve estudos na interface da saúde com a comunicação, por mais que os transtornos psiquiátricos sejam problemas sérios e mereçam todo o cuidado, eles têm sido equivocadamente apontados como justificativa para qualquer dor ou experiência negativa pelas quais as pessoas naturalmente passam.

“Há uma dificuldade de lidar com fenômenos que estão fora do padrão de felicidade difundido midiaticamente sem colocar uma etiqueta de diagnóstico psiquiátrico”, observa Saint Clair.

Na medicina: entre avanços e percalços

Diferentemente do que muitos pensam, os transtornos psiquiátricos não são doenças com maior incidência em pessoas de idade avançada, e sim em jovens entre 15 e 25 anos. Segundo o psiquiatra Antonio Egídio Nardi, essa é uma fase de maturação do cérebro, na qual os indivíduos não são mais crianças, mas ainda estão se adaptando ao mundo adulto. “Excluindo as demências, a maioria dos transtornos tem início na idade adulto-jovem, principalmente os transtornos de humor – como a depressão e o transtorno bipolar – e os psicóticos – como a esquizofrenia”, ressalta.

Jovem
Diferentemente do que sugere o senso comum, os transtornos psiquiátricos atingem mais jovens do que idosos, principalmente os distúrbios de humor e os psicóticos. (foto: margarit ralev/ Sxc.hu)

A ciência ainda não conhece a origem dos transtornos psiquiátricos, mas muitos estudos associam fatores genéticos ao desenvolvimento desses males, principalmente nos casos dos transtornos bipolar, do pânico e da depressão. “A questão genética está presente, mas ela não é determinante”, observa o psiquiatra. Ou seja, a pessoa pode ter um componente genético ligado a um tipo de transtorno, entretanto, este só irá desenvolver-se em caso de estresse psicossocial. “Quem não tem aquela carga genética pode passar pelos maiores sofrimentos na vida que não irá desenvolver nenhum transtorno psiquiátrico, como é o caso da maioria da população.”

“Quem não tem aquela carga genética pode passar pelos maiores sofrimentos na vida que não irá desenvolver nenhum transtorno psiquiátrico”

O possível aumento do número de pacientes com transtornos psiquiátricos, na avaliação de Nardi, pode estar relacionado com problemas de diagnóstico. Em estudos epidemiológicos, por exemplo, diferentemente do que ocorre em uma avaliação médica criteriosa, é comum se fazer perguntas mais gerais aos pacientes, o que pode levar a interpretações equivocadas. “Às vezes, isso faz com que duas ou três perguntas resultem em um diagnóstico de depressão, de fobia social ou de psicose”, explica.

Além disso, o estigma que esse tipo de transtorno ainda carrega, aliado ao fácil acesso aos sintomas das doenças pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Psiquiátricos (DSM, na sigla em inglês) e aos fármacos para tratamentos, faz com que muitas pessoas não procurem um especialista e optem pelo autodiagnóstico e autotratamento.

Para Nardi, as consequências disso é que, em grande parte das vezes, a pessoa realiza o diagnóstico e o tratamento errados, o que pode levar a efeitos colaterais como intoxicação e síndromes neurológicas, bem como fazer com que o transtorno agrave. “Por isso é importante a divulgação na mídia de fontes fidedignas a respeito dos transtornos psiquiátricos, para que as pessoas busquem a ajuda especializada e melhorem”, ressalta.

Com o desenvolvimento da medicina, os tratamentos para essas doenças evoluíram muito, a ponto de deixar de lado a psiquiatria asilar, na qual o paciente com depressão ou esquizofrenia, por exemplo, ficava a vida toda internado. “Hoje o que temos é uma psiquiatria ambulatorial na qual só os casos agudos têm internações breves”, esclarece o psiquiatra. 

“Hoje o que temos é uma psiquiatria ambulatorial na qual só os casos agudos têm internações breves”

Ele afirma que, além do avanço dos diagnósticos clínicos, mais rígidos e esclarecedores, também houve grande evolução no tratamento farmacológico e nas psicoterapias, o que contribui para a diminuição das internações. “Hoje existem remédios mais eficazes para casos de depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, além das psicoterapias mais objetivas e grupos de apoio, que ajudam a pessoa a lidar com suas dificuldades.”

Além disso, antigas formas de tratamento, vistas anteriormente como muito agressivas, também evoluíram e são usadas atualmente em casos específicos. “Uma que ajuda principalmente indivíduos com depressão grave é a eletroconvulsoterapia, vulgo eletrochoque, que usa novas tecnologias, mais seguras e muito eficazes”, acrescenta Nardi.

Na cultura: justificativa para a dor

Um debate quente que vem sendo travado no campo das humanidades sobre os transtornos psiquiátricos envolve um novo gênero literário juvenil, chamado em alguns meios de sick-lit (de sick literature; literatura doente, em tradução livre para o português). Marcado por histórias realistas sobre adolescentes com câncer, depressão e outros problemas “modernos”, a sick-lit já foi acusada – em texto polêmico publicado no jornal britânico Daily Mail e repercutido na mídia brasileira – de ser má influência para os jovens e causar o aumento de transtornos psiquiátricos entre esse público.

Para Gallego, as histórias do gênero sick-lit pecam por usar os transtornos psiquiátricos para justificar traços da personalidade dos personagens

O psicanalista Luiz Fernando Gallego, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, discorda. Para ele, culpar um livro ou filme pelo desenvolvimento de uma doença é criar uma cultura higienista. “É transformar tudo em causa para os problemas; as pessoas são bem mais complexas que isso”, afirma.

A seu ver, as histórias do gênero sick-lit pecam mais por usar os transtornos psiquiátricos para justificar traços da personalidade dos personagens. Um exemplo é o caso do introvertido Charlie, protagonista de As vantagens de ser invisível, de Stephen Chbosky. “É uma pena precisar do trauma de infância para explicar o menino tímido”, comenta o psicanalista, que também é crítico de cinema. “Os adolescentes são muito ricos em suas características e diferenças; não há necessidade de uma causa única para cada um ser como é.”

Assista ao trailler (legendado) do filme As vantagens de ser invisível

Para o comunicólogo Ericson Saint Clair, isso se dá principalmente porque, na sociedade atual, as pessoas precisam de uma explicação objetiva para suas dores, melancolias e experiências negativas que não condizem com o estilo de vida padrão disseminado pela mídia. “A pessoa tem que estar muito feliz, saudável, sorridente, supersarada e bronzeada como as que aparecem na capa de revistas”, ressalta. “Aquele que não seguir o padrão, se tiver cinco de uma lista de nove sintomas de depressão por mais de duas semanas, está apto ser diagnosticado com esse transtorno.”

Saint Clair: “A pessoa tem que estar muito feliz, saudável, sorridente, supersarada e bronzeada como as que aparecem na capa de revistas”

Em vez de entrar no mérito literário do sick-lit, como na reportagem do Daily Mail, Saint Clair acredita que é preciso entender melhor o potencial desse gênero para a discussão sobre os transtornos psiquiátricos na cultura. “Já que a gente está nesse campo semântico de doenças psíquicas, há uma maneira mais produtiva de investigar esse tipo de fenômeno”, defende. “Eu vejo esse gênero literário como um campo curioso para a produção de sentido, mas se é positivo ou negativo, depende do caso.”

Déborah Araújo
Ciência Hoje On-line