Um em cada dois mil bebês nasce com uma malformação craniana chamada cranissonostose, que pode resultar em problemas neurológicos sérios. O tratamento para essa condição é delicado: uma cirurgia realizada já a partir dos seis meses de vida. Em pacientes tão frágeis, cada corte do cirurgião precisa ser bem calculado. Para auxiliar esse processo, uma dupla de brasileiros desenvolveu um modelo matemático capaz de prever a melhor maneira de conduzir a cirurgia.
O crânio de um recém-nascido é formado por sete ossos espaçados entre si que formam no topo da cabeça um orifício conhecido como ‘moleira’. Até cerca de um ano de idade, os ossos ficam ‘soltos’ para poder acomodar o cérebro em crescimento. No bebê com craniossinostose, esses ossos se fundem prematuramente e o cérebro, que continua crescendo, passa a comprimir o crânio, que se deforma.
Para a cirurgia que vai corrigir a deformação, os cirurgiões normalmente usam como guia uma tomografia de um crânio normal da mesma idade do paciente. A partir desse modelo ideal de crânio, os médicos escolhem quantos cortes fazer e onde. Mas essa decisão é puramente intuitiva e baseada apenas na experiência do profissional.
“Essa falta de um método objetivo torna difícil o treinamento dos cirurgiões e também avaliar se o resultado da cirurgia é o melhor possível”, comenta um dos pesquisadores envolvidos no estudo, o matemático brasileiro Ricardo Fukasawa, da Universidade de Waterloo (Canadá).
Fukasawa e seus orientandos foram procurados pelo Hospital Sick Kids, em Toronto, para ajudar a resolver essa situação com a criação de ferramentas que tornassem a tomada de decisões na cirurgia mais objetiva. Aí entra o modelo matemático desenvolvido pelo pesquisador e seu aluno de doutorado André Linhares.
Os dois chegaram a um conjunto de equações e fórmulas que pode ser usado para comparar um modelo 3D de crânio ideal obtido a partir de uma tomografia computadorizada com o modelo tridimensional do crânio a ser operado.
Essas equações são a base de um programa de computador que analisa os dados dos crânios e diz ao cirurgião exatamente o que fazer para se conseguir o melhor resultado com o menor número possível de cortes – o que torna mais rápida a cirurgia e a recuperação. Para se ter uma ideia, os procedimentos de cranissonostose costumam durar até cinco horas.
“Trabalhamos com duas curvas, a do crânio deformado e a do crânio ideal, e usamos um algoritmo que encontra as posições de corte que levam à menor área possível entre a curva pós-operatória e a curva ideal”, explica Linhares. “Como precisamos escolher os cortes entre centenas de opções, o número de soluções possíveis é grande demais e, para contornar isso, usamos uma técnica chamada ‘programação dinâmica’, que ‘quebra’ o problema em subproblemas menores, resolvendo-os e combinando suas soluções para obter uma solução global.”
Do computador para a sala de cirurgia
Em outubro do ano passado, o modelo matemático dos brasileiros foi posto à prova pela primeira vez em uma cirurgia real. Segundo eles, os resultados oferecidos pelo programa nesse caso foram semelhantes às escolhas dos cirurgiões. Mas, quando compararam as indicações do programa com as opções feitas em outras cirurgias, viram que isso nem sempre ocorre.
“Em alguns casos, as soluções encontradas pelo algoritmo são parecidas com as dos cirurgiões, mas, em outros, elas diferem consideravelmente, o que mostra que, para obter um resultado ótimo, é necessário usar soluções que não parecem intuitivas ao médico”, comenta Fukasawa.
Nos próximos meses, o modelo será usado em cirurgias de 20 pacientes. Os resultados pós-operatórios serão analisados e comparados com os obtidos em cirurgias que não usaram o modelo matemático.
Os pesquisadores esperam que o programa de computador também possa servir para treinar cirurgiões. Além disso, os modelos matemáticos já estão sendo ajustados para aplicação em cirurgias cranianas mais complexas.
Para isso, os cientistas enfrentam alguns desafios técnicos. “Por um lado, precisamos que a modelagem seja o mais realista possível, mas, por outro, quanto mais realista a modelagem, mais difícil tende a ser a resolução do problema”, diz Linhares.
Os pesquisadores também contam que o estudo trouxe desafios na comunicação com profissionais de uma área tão diferente da matemática como a medicina. “Foi difícil falarmos a mesma língua que os cirurgiões”, pontua Fukasawa. “Cada um dos grupos está acostumado com os termos técnicos de sua área, então estabelecer uma comunicação foi complicado, sem deixar de ser muito enriquecedor para todos.”
O trabalho dos brasileiros ainda não foi publicado e não existe expectativa de que o programa de computador venha a ser comercializado para médicos. Mas Fukasawa acredita que o estudo abre caminho para uma nova abordagem na medicina. “Tenho esperança que o nosso trabalho revolucione a maneira como essas cirurgias são feitas e traga resultados melhores para todos.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line