Muito além das pérolas

Enquanto algumas pessoas se interessam apenas pelas pérolas produzidas pela ostra-do-pacífico (Crassostrea gigas), um grupo de pesquisadores liderado pelo chinês Guofan Zhang foi atrás de outra preciosidade que a espécie poderia fornecer: sua constituição genética.

O sequenciamento e a montagem do genoma de C. gigas, pertencente ao filo Mollusca, revelou grande capacidade de adaptação da espécie a estresse ambiental, como variação de temperatura e salinidade, e exposição ao ar ou a metais pesados. O estudo, aliado à análise de proteínas contidas na concha da ostra, mostrou ainda que o processo de formação do envoltório é mais complexo do que se pensava.

O estudo, que levou mais de quatro anos para ser concluído, está descrito em artigo publicado na edição de hoje (19/09) da revista Nature. O trabalho é assinado por 85 autores vinculados a 13 diferentes instituições de China, Estados Unidos, Reino Unido, Croácia, Alemanha e Dinamarca.

Embora Mollusca seja um dos filos animais mais ricos em número de espécies, ainda é pouco explorado do ponto de vista genômico

Embora Mollusca seja um dos filos animais mais ricos em número de espécies, ainda é pouco explorado do ponto de vista genômico. Zhang, um dos autores do trabalho, explica que a dificuldade da tarefa está no fato de esses invertebrados marinhos terem um alto grau de polimorfismo (diferentes versões de sequências de DNA em um determinado local cromossômico).

Superar esse obstáculo não foi simples. Como o genoma da ostra-do-pacífico apresenta ainda várias sequências repetidas, o trabalho de montagem (que segue o sequenciamento) foi feito por meio de uma técnica conhecida como fosmid-pooling, que consiste na criação de uma ‘biblioteca’ de clones que são sequenciados e montados individualmente.

O passo seguinte foi juntar os dados genômicos a transcriptomas, que podem ser entendidos, de maneira simplificada, como amostras do reflexo direto da expressão dos genes. No estudo em questão, foram usados transcriptomas de vários órgãos, de diferentes estágios de desenvolvimento da ostra e de indivíduos em variados níveis de exposição a estresse ambiental.

Por fim, as informações obtidas foram combinadas a uma análise espectrométrica das proteínas que constituem a concha do animal. “Tudo isso nos permitiu compreender aspectos-chave da biologia dos moluscos relacionados à formação da concha e à resposta ao estresse”, escrevem os autores no artigo.

A ostra-do-pacífico é uma das espécies de maior interesse para a aquicultura mundial. Além de produzir pérolas, o molusco é utilizado na culinária de diversos países. Como organismo filtrador, tem importante papel na ecologia de estuários e nas costas litorâneas. No campo da pesquisa, é considerado um dos modelos mais representativos do filo Mollusca.

Concha aberta de uma ostra-do-pacífico
Concha aberta de uma ostra-do-pacífico. Espécie é utilizada na culinária de diversos países. (foto: Shitao Liu/ Guofan Zhang)

Formação da concha

Historicamente, dois modelos principais foram criados para explicar a formação da concha de moluscos: o matricial e o celular. O primeiro propõe que o envoltório é criado pelo manto, uma fina camada de tecido que protege as vísceras do animal, por meio da secreção de quitina, fibroína de seda e proteínas ácidas.

Já o modelo celular, como o nome diz, sugere que a formação da concha é mediada por células. Cristais de carbonato de cálcio seriam produzidos em hemócitos e então secretados na forma de valvas.

“Descobrimos que várias proteínas desconhecidas podem ter papel importante na construção e modificação da matriz orgânica, um indício que sustenta o modelo matricial”, diz Zhang em entrevista concedida à CH On-line. “Mas a diversidade de proteínas detectadas na concha mostra que nesse processo ainda há a participação ativa não só de células, mas também de exossomos [complexo multiproteico presente no interior das células capaz de degradar diversos tipos de RNA].”

Ostras-do-pacífico
Ostras-do-pacífico no litoral de Xiamen, China. Pesquisa mostrou que formação da concha do molusco é mais complexa do que se acreditava. (foto: Lumin Qian)

Ou seja, o mecanismo de formação das conchas não pode mais ser explicado apenas pelo modelo matricial ou celular, já que é muito mais complexo do que se acreditava.

Adaptação ao estresse

Os estudos de transcriptoma revelaram uma grande sequência de genes ligados a meios de defesa contra estresse ambiental, como oxidação e antioxidação, resposta imune, apoptose (autodestruição celular ordenada) e dobramento de proteínas (processo que torna a proteína capaz de realizar sua função biológica).

Os estudos revelaram uma grande sequência de genes ligados a meios de defesa contra estresse ambiental

Os pesquisadores descobriram que o genoma da ostra-do-pacífico contém 88 proteínas de choque térmico, que estão diretamente ligadas à proteção de células contra o calor e outros tipos de estresse ambiental. Para se ter uma ideia, em ouriços-do-mar há 39 dessas proteínas, e em humanos, 17.

“A grande quantidade de genes de defesa e as respostas transcriptômicas complexas mostram as sofisticadas adaptações genômicas da ostra à vida séssil em um ambiente altamente estressante.”

Para Zhang, tão importante quanto saber um pouco mais sobre a evolução dos moluscos foi criar, a partir desse estudo, um grande corpus de dados sobre a ostra. “Isso servirá para futuros estudos do filo, que merece ser mais bem compreendido.”


Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR