Muitos tons entre o preto e o branco

Uma equipe de pesquisadores pode ter posto fim a um grande mito racial do Brasil. Estudo genético populacional realizado junto a comunidades remanescentes de quilombos mostra que elas não foram fundadas apenas por escravos e ex-escravos negros, mas também por ‘índios’, ‘brancos’ e ‘mestiços’.

Remanescentes do quilombo de Kalunga, no estado de Goiás, o maior do país, com cerca de 5300 indivíduos (foto: Ana Paula Inglêz)

A conclusão é de pesquisadores de Ribeirão Preto e Brasília. Na capital federal, está o núcleo de pesquisa coordenado pela geneticista Silviene de Oliveira, da Universidade de Brasília (UnB). O grupo conta com mais de 40 cientistas, entre geneticistas, médicos e antropólogos.

Hoje há mais de 740 comunidades quilombolas em todo o Brasil — mas isso não facilitou em nada o trabalho dos pesquisadores. “A maioria dessas comunidades está em áreas rurais de difícil acesso”, diz Silviene. “Tivemos de contar com a memória das pessoas para se lembrarem da origem geográfica de seus avós.”

O objetivo inicial era contar a história dos africanos no Brasil a partir da herança genética deixada aos seus descendentes. “A idéia era comparar os resultados obtidos em países africanos de hoje com o de populações ‘negras’ brasileiras”, explica Silviene. Para investigá-las, nada melhor do que estudar os quilombos, pensaram os cientistas.

No entanto, conforme entrevistavam os remanescentes e faziam o estudo genético de sua população, os pesquisadores se intrigavam com a miscigenação racial constatada. Viram, assim, que o estudo estava investigando uma história que não se limitava à trajetória dos negros no Brasil.

O grupo estudou dois tipos de marcadores genéticos: os localizados no cromossomo sexual Y e os cromossomos não sexuais (autossômicos). Como o Y é passado apenas pelo pai aos filhos homens, sua seqüência genética se altera muito pouco com o passar das gerações e é possível estimar a contribuição genética dos grupos ancestrais para a formação da população em estudo.

 

Remanescentes do quilombo de Riacho de Sacutiaba, na Bahia, com 209 habitantes (foto: Iara Brasileiro)

O estudo avaliou, nas comunidades de Rio das Rãs e Riacho de Sacutiaba (BA), Mocambo (SE) e Kalunga (GO), haplótipos do cromossomo Y (haplótipos são regiões do genoma herdado que não sofreu recombinação). Os haplótipos observados nessas comunidades, quando comparados com os encontrados em populações da África subsaariana, indicaram uma contribuição não-africana significativa.

 

Os marcadores autossômicos confirmam essa miscigenação. A análise de uma deleção no gene ccr5, cuja origem foi remontada como sendo européia com idade de cerca de 700 anos, demonstrou sua presença em todos os remanescentes analisados, sendo que em Mocambo (SE) sua freqüência é similar à encontrada em populações urbanas do Sudeste brasileiro (7,5%). O alto índice sugere fortemente que essas comunidades foram fundadas por indivíduos ao menos miscigenados com europeus ou euro-descendentes.

Silviene destaca que as conclusões têm grande valor simbólico: vão além da esfera genética e podem ajudar a romper o preconceito racial velado existente no país. “O estudo mostra que a categorização em negros, brancos e pardos não tem razão de ser, pois a maioria dos que se consideram negros têm também ancestrais brancos e vice-versa”, diz Silviene, para concluir que o Brasil é, de fato, o país da diversidade. 100% miscigenado.

Rafael Barros
Ciência Hoje On-line
02/12/03