Quando pensamos em sociedades antigas, é comum imaginarmos o homem no papel de governante e líder espiritual. Mas nem toda civilização foi assim. Um exemplo peculiar é o povo Moche, que habitou o norte da costa do Peru de 100 A.C. a 550 A.D. De acordo com a arqueóloga Sonia Guillén, que participou semana passada do 8º Congresso Mundial de Estudos em Múmias, no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, parte dos povoados dessa cultura era governada por mulheres que assumiam tarefas comumente desempenhadas por homens, como o sacrifício ritual.
A constatação foi feita a partir da descoberta da múmia de uma jovem em torno dos 25 anos enterrada com honraria no complexo arqueológico de El Brujo, na cidade Magdalena de Cao. Conhecida como a Dama de Cao, ela foi encontrada em 2006 em uma tumba no pátio de um templo em ruínas. No sepultamento, foram recuperados diversos vasos de cerâmica contendo resquícios de comida, joias de ouro, pedras preciosas e objetos nunca vistos antes no enterro de uma mulher andina, como punhais, lanças e ferramentas usadas em sacrifícios humanos.
“Esses objetos mostram o quão importante era essa jovem e que ela ocupava um lugar de poder político e bélico”, diz Guillén, que não participou das escavações, mas hoje trabalha com o arqueólogo responsável pela descoberta, Régulo Franco Jordán.
A pesquisadora conta que o colega descobriu a múmia depois de participar de um ritual religioso andino e sonhar que deveria escavar em um local não programado – exatamente onde a tumba foi encontrada. “A religião andina ainda é muito forte no Peru”, diz. “Não é algo que se comente, mas muitos arqueólogos pedem permissão aos deuses antes de escavar um local sagrado e contam com esses métodos altamente ‘científicos’, mas que às vezes dão certo.”
Junto da múmia, que data de 400 A.D., foram encontrados ainda murais com desenhos de mulheres sacrificando homens com aparência de guerreiros. Os artefatos levaram os arqueólogos a crer que na sociedade Moche, que habitou Magdalena de Cao, as mulheres ocupassem o papel de sacerdotisas e governantes. “Foi uma surpresa porque até o momento só tínhamos visto homens representados como guerreiros e figuras de poder na iconografia andina”, comenta Guillén.
A múmia da jovem andina está exposta no Museu de Cao, perto de onde foi encontrada, e continua sendo objeto de estudo. Sobre seu corpo, os pesquisadores encontraram uma camada de sulfato de mercúrio, que deve ter sido usado propositalmente para mumificação.
As especulações recentes dizem respeito à causa de sua morte. A explicação mais aceita é de que ela teria morrido ao dar à luz uma criança. “A múmia não tem mais os órgãos internos, mas sua pele está muito bem preservada”, diz Guillén. “Além de tatuagens com motivos geométricos e animais, podemos ver que a região do abdômen apresenta um acúmulo de pele flácida, que pode ser indicativo de um parto recente.”
Desde a escavação da Dama de Cao, os arqueólogos já recuperaram outras múmias de mulheres que pareciam ter posição de prestígio. Algumas delas dividiam a tumba com homens e crianças que foram enterrados em diferentes momentos.
Para Guillén, o complexo de El Brujo ainda guarda muitos segredos. “A sociedade que viveu ali é incrível, altamente complexa, e precisamos de mais base para compreendê-la”, diz. “Ainda há muito a descobrir por lá e torço para que isso aconteça.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line