Mulheres: olfato apurado

Bem que alguns homens já desconfiavam: mulheres, em geral, têm habilidades mais apuradas para a identificação de aromas. Essa percepção olfativa mais sofisticada, no entanto, sempre foi mais uma observação do imaginário popular, sugerida também por alguns estudos científicos não tão conclusivos. Agora, uma pesquisa desenvolvida nos laboratórios da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em colaboração com o Banco de Cérebros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), confirma a suspeita e os motivos por trás dessa capacidade diferenciada.

Ao analisar 18 cérebros humanos – 7 de homens e 11 de mulheres –, a neurocientista Ana Virgínia Oliveira-Pinto, que realizou seu doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, dedicou especial atenção ao chamado bulbo olfatório. Trata-se da região cerebral responsável pelo processamento de cheiros, odores, aromas. E a surpresa: “Há diferenças estruturais significativas entre o bulbo olfatório masculino e o bulbo olfatório feminino”, constatou a pesquisadora.

Em comparação com os homens, as mulheres têm de 40% a 50% mais células nessa região do cérebro. Enquanto elas somam em média 16,2 milhões de células totais no bulbo olfatório, eles apresentam apenas uma média de 9,2 milhões. E mais: na mesma região cerebral, a pesquisadora verificou que as mulheres têm em média 6,9 milhões de neurônios, enquanto os homens têm em média menos de 3,5 milhões.

Cérebro
Pesquisadora retira do cérebro o bulbo olfatório. O estudo mostra que a região responsável pela percepção de aromas é mais complexa em mulheres do que em homens. (foto: Instituto de Ciências Biomédicas/ UFRJ)

Segundo os autores do estudo, é bem razoável supor que tamanha diferença quantitativa tenha algum impacto no desempenho funcional dessa região do cérebro. Logo, há um bom embasamento para afirmar que, realmente, as mulheres são biologicamente mais bem preparadas para a distinção de aromas.

Comprovando a suspeita

Diversos estudos de ressonância magnética já apontavam para essa mesma conclusão. Ao longo dos últimos anos, cientistas perceberam que regiões cerebrais responsáveis pelo olfato eram mais ativadas em mulheres do que em homens, quando ambos os grupos eram expostos a testes em que deveriam identificar diferentes tipos de aroma.

Oliveira-Pinto: “Nosso trabalho é o primeiro a demonstrar diferenças morfológicas e estruturais no bulbo olfatório feminino em relação ao masculino”

Mas não se suspeitava o que estaria por trás dessa diferenciação. Os resultados de pesquisa eram sempre controversos e não respondiam por completo uma dúvida importante: será que a maior sensibilidade olfativa feminina estaria relacionada a algum parâmetro social e cognitivo; ou seria resultado de alguma estrutura biológica diferenciada?

“Nosso trabalho é o primeiro a demonstrar diferenças morfológicas e estruturais no bulbo olfatório feminino em relação ao masculino”, diz Oliveira-Pinto. Esse é um dos motivos pelos quais os novos resultados, publicados no periódico PLoS One, têm tido boa repercussão na comunidade científica.

Picadinho de cérebro

A propósito, a técnica usada para chegar a tais conclusões vale um parêntesis. Ela é conhecida como fracionamento isotrópico – e foi desenvolvida na própria UFRJ pelos neurocientistas Suzana Herculano-Houzel e Roberto Lent (um dos coautores do estudo publicado por Oliveira-Pinto). “Esse método nos permite estimar o número absoluto de células em uma determinada região cerebral”, explica a pesquisadora. Na prática, é como se os cientistas conseguissem contar neurônio por neurônio, célula por célula.

Isso não é possível pelos métodos convencionais de pesquisa, como a estereologia. Com essa técnica tradicional, usada tanto para estudos do cérebro como de outras estruturas biológicas, a ideia é cortar o tecido em finíssimas lâminas: a partir dessas pequenas fatias, conta-se o número de células desejadas em uma certa região; e, por meio de métodos estatísticos, estima-se a quantidade de cada tipo de célula. “Mas esse método nem sempre é tão preciso quanto gostaríamos”, ressalva a neurocientista.

Já com o fracionamento isotrópico, a história é outra. Primeiro, retira-se do cérebro a região de interesse – no caso, o bulbo olfatório. Ele é dissecado e, em seguida, cortado em pequenos pedaços: se na estereologia a ideia é fazer uma espécie de ‘carpaccio’ de cérebro, no fracionamento isotrópico seria mais um picadinho.

Bulbo olfatório
O bulbo e o trato olfatório, que formam uma das principais regiões responsáveis pelo processamento de estímulos olfativos, pesam 0,15 g e localizam-se na base do cérebro. (foto: Instituto de Ciências Biomédicas/ UFRJ)

Os pedaços são colocados em um pequeno tubo. E, a seguir, são triturados e macerados. São também submetidos a movimentos circulares – para, digamos, misturar melhor o material. Aos poucos, o que era um tecido anisotrópico – isto é, não uniforme – torna-se um tipo de massa isotrópica – isto é, mais uniforme e mais homogênea.

O próximo passo é levar esse material a um microscópio. Agora, os pesquisadores podem de fato gerar uma imagem e contar, visualmente, quantas células existem naquela amostra de material. Não é uma mera estimativa, como nos métodos convencionais, e sim uma quantificação deveras precisa.

Não é uma mera estimativa, como nos métodos convencionais, e sim uma quantificação deveras precisa

Em tempo: alguns podem questionar os resultados do novo estudo alegando que o número de cérebros estudados – apenas 18 – não é lá tão significativo. “De fato, não é um número muito grande”, admite a pesquisadora. Ela diz que, apesar disso, os resultados são confiáveis, pois a amostra, ainda que limitada, foi muito bem selecionada e padronizada. Todos os cérebros eram de pessoas com mais de 50 anos; e nenhuma delas foi diagnosticada com qualquer tipo de problema neurológico ao longo da vida. “Mesmo não tendo trabalhado com um número maior de cérebros, analisamos uma amostra bem representativa.”

Tais estudos só podem ser feitos com cérebros post mortem. Isso significa que pode ser bastante difícil conseguir uma boa quantidade de material em condições ideais para esse tipo de investigação.

Iguais, ainda que diferentes

A aparente superioridade feminina para assuntos olfativos reacende uma questão controversa. Há, de fato, diferenças morfológicas e estruturais significativas entre os cérebros de homens e de mulheres?

“Encontramos muitos trabalhos na literatura científica afirmando que sim; por outro lado, também encontramos muitas pesquisas afirmando que não”, pondera Oliveira-Pinto. Homens têm mais neurônios aqui ou ali; mulheres têm mais neurônios lá… “É realmente um assunto polêmico que desperta muitas dúvidas”, confessa a neurocientista. E ela adianta: “É exatamente desse assunto que tratarei em meu próximo artigo científico”.

Enquanto isso, permanecerá a velha dúvida. Mas colocada de uma nova maneira: se, entre homens e mulheres, há claramente uma diferença estrutural na região do bulbo olfatório, será que não pode haver diferenças em outras regiões cerebrais também?

Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line