Na fronteira do cérebro

Doenças neurodegenerativas ainda sem cura são alvos de pesquisas em todo o mundo. Existe uma série de tratamentos em uso, outros tantos em fase de teste e a expectativa, principalmente dos pacientes que sofrem dessas enfermidades, é grande.

Nesse contexto, o Laboratório de Neurocirurgia Molecular AG Nikkhah, na Universidade de Freiburg (Alemanha) destaca-se por seus estudos pioneiros com células-tronco embrionárias humanas. Há dois anos, pesquisadores do laboratório iniciaram transplantes com essas células em portadores da doença de Huntington. Em janeiro do ano que vem, pretendem fazer transplantes similares em pacientes de Parkinson.

O médico e neurocientista colombiano William Omar Contreras Lopez, 36 anos, há quase três na Alemanha, compartilha com entusiasmo os avanços de sua equipe. Ele foi um dos quase 600 jovens cientistas escolhidos entre 25 mil para participar do 61º Encontro de Prêmios Nobel em Lindau, na Alemanha, que contou com a presença de 23 laureados.

Em entrevista concedida à CH On-line na semana do evento (26/6-1/7), Lopez falou de sua passagem pelo Brasil, onde realizou cirurgias de coluna e cérebro; das pesquisas de ponta que desenvolve hoje na Universidade de Freiburg, na Alemanha, e dos resultados preliminares obtidos com pacientes de Huntington.

Falou ainda dos contrastes entre fazer pesquisa na Alemanha e na Colômbia, dos dias que passou em Lindau discutindo ciência com Nobel e da vontade que tem de levar três laureados para o seu país como uma forma de alavancar a pesquisa e estimular os cientistas locais.

O que o levou ao Brasil?
Fui para Curitiba fazer cirurgia de coluna com o professor Luiz Roberto Vialle. Fiz um estágio com ele de um ano na PUC do Paraná. Depois, como tinha a intenção de continuar os meus estudos em cirurgia do cérebro, fui para São Paulo trabalhar com o professor Manoel Jacobsen Teixeira. Trabalhei com ele e com Erich Fonoff no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, fazendo neurocirurgia funcional estereotáxica, que trata epilepsia, movimentos involuntários – comum em pacientes de Parkinson –, dor e também doenças que afetam o comportamento – como depressão, agressividade e transtorno obsessivo-compulsivo. Uma parte importante desse tipo de neurocirurgia com a qual me envolvi é a estimulação cerebral profunda (DBS, na sigla em inglês), um tratamento cirúrgico que envolve a implantação de um dispositivo médico – o marca-passo cerebral –, que envia impulsos elétricos para partes específicas do cérebro. Ela oferece benefícios terapêuticos significativos para transtornos de movimento resistentes a outras formas de tratamento, como os já mencionados.

Do Brasil você veio para a Alemanha. Dessa vez, qual foi a motivação?
O marco de estereotaxia, usado nos procedimentos neurocirúrgicos, foi criado na Universidade de Freiburg, há 60 anos. O marco é um tipo de anel colocado na cabeça do paciente que marca três pontos. Durante a neurocirurgia, essas marcações são usadas como coordenadas para a inserção dos eletrodos nos locais devidos. Queria ir a Freiburg para aprender bem as técnicas de estereotaxia e acabei me envolvendo com as pesquisas mais avançadas de transplante de células-tronco que visam restabelecer conexões neuronais perdidas pela morte de um número grande de neurônios em pessoas com distúrbios neurodegenerativos. Hoje trabalho no grupo de Freiburg que está fazendo transplante de células-tronco embrionárias humanas em pacientes com Huntington, uma enfermidade que não tem cura. Iniciamos a pesquisa há dois anos e até agora fizemos o transplante em 16 pacientes. A meta é chegar a 40.

Qual a fonte das células-tronco utilizadas e como é o procedimento?
Usamos embriões resultantes de interrupção voluntária da gravidez, ou seja, de aborto – legalizado na Comunidade Europeia –, com o consentimento das genitoras. Recebemos embriões que estão entre a sétima e a décima segunda semana de desenvolvimento. Por meio de microcirurgias, retiramos células dopaminérgicas do mesencéfalo ventral do embrião – é a falta de dopamina que leva aos sintomas da doença de Huntington. Depois de alguns procedimentos, colocamos as células em uma seringa e fazemos a implantação estereotáxica em locais específicos do cérebro do paciente. Implantamos cerca de 150 mil células de um lado do cérebro e, duas semanas depois, repetimos o procedimento, com o mesmo número de células, do outro lado do cérebro. Apesar de usarmos células de embriões nesse procedimento, é importante ressaltar que não paramos de pesquisar outras fontes de produção de neurônios, já que o ideal seria usar células do próprio paciente. Nesse sentido, temos dois projetos desenvolvidos paralelamente, um para produzir neurônios a partir da própria pele do paciente e outro a partir de células suprarrenais. Mas, por enquanto, ainda não temos resultados positivos para passar da fase experimental para a fase clínica.

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Células dopaminérgicas de fetos são transplantadas para o cérebro de pacientes que sofrem de Huntington. Já foram feitos transplantes em 16 pacientes e os resultados estão em fase de análise. (foto: cedida por Lopez)


Quais os resultados alcançados até agora com os pacientes de Huntington?

Estamos muito cautelosos em relação aos resultados, pois ainda estamos em fase de análise. Não queremos que eles sejam mal divulgados e que, depois, o procedimento seja desacreditado. Mas, para você ter uma ideia, uma parte importante dos pacientes com Huntington que se submeteram ao implante está com a doença pelo menos estabilizada. Não temos a cura, por enquanto, mas temos a estabilização da enfermidade por um período maior de tempo, uma melhora na parte motora e também na cognitiva – a mais atingida na doença de Huntington.

Foi observada alguma resposta negativa ao tratamento?
Estamos tendo problemas relacionados à imunossupressão. Como as células implantadas não são do próprio paciente, temos que ministrar medicamentos imunossupressores, para que o organismo não rejeite essas células. Só que há efeitos colaterais. Alguns pacientes apresentam problemas relacionados a isso, portanto, é algo que precisamos melhorar. Mas, por enquanto, não observamos o desenvolvimento de tumores em nenhum paciente, uma possibilidade que sempre tememos. 

Quais são os próximos passos?
Vamos continuar os estudos em Huntington, fazer transplante com mais pacientes e controlar cuidadosamente os pacientes já transplantados. Estamos desenvolvendo também pesquisa em Parkinson, com um consórcio de cinco países – Inglaterra, França, Áustria, Suécia e Alemanha. Queremos começar a fazer o transplante de células-tronco em pacientes de Parkinson em janeiro de 2012. Para isso, estamos melhorando o protocolo da pesquisa. 

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Lopez no Laboratório de Neurocirurgia Molecular AG Nikkhah, na Universidade de Freiburg (Alemanha), onde desenvolve estudos de ponta em neurociência. Na Colômbia, seu país de origem, não teria as mesmas condições de pesquisa. (foto: cedida por Lopez)


Você tem expectativa de voltar para a Colômbia?

Essas expectativas de voltar para a América Latina terminam sendo muito românticas. Claro que eu gostaria de retornar para compartilhar minha experiência aqui e ajudar a alavancar a ciência no meu país. Mas aqui há facilidades para fazer pesquisa que lá não tem. Por exemplo, se preciso de um material, um anticorpo, um marcador, qualquer coisa, tem aqui. Está na geladeira e é só pegar. Na Colômbia, se um dia eu precisar de um anticorpo muito caro, talvez não consiga. No fundo, eu gostaria de voltar, mas seria mais por amor à Colômbia do que pelas possibilidades de pesquisa que o país oferece no momento. Assim, termina sendo um pensamento romântico.

O evento em Lindau correspondeu as suas expectativas?
Esta semana foi um sonho transformado em realidade. Conhecer um prêmio Nobel já é um privilegio, mas quando se tem a oportunidade de conhecer mais de 20, é uma experiência inesquecível, para a vida inteira. Um dos meus objetivos é poder levar três laureados para Colômbia, como uma forma de impulsionar a pesquisa no meu país. Temos muitas doenças que devem ser mais estudadas, como a leishmaniose, a malária e a tuberculose, e precisamos de mais centros de pesquisa para isso. Precisamos também dar um pouco de inspiração aos jovens cientistas de lá, para seguirem o caminho da pesquisa e da academia. Levar os Nobel será, sem dúvida, um bom começo.


Carla Almeida *

Ciência Hoje On-line

* A jornalista viajou para a Alemanha a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD).

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:

O período embrionário termina na oitava semana depois da fecundação, quando o embrião passa a ser chamado de feto. Portanto, é mais correto chamar as células utilizadas na pesquisa de William Omar Contreras Lopez com pacientes de Huntington retiradas de embriões/fetos entre a sétima e a décima segunda semana de desenvolvimento de células-tronco fetais. Isto as diferencia, sobretudo, das ‘células-tronco embrionárias’, termo comumente usado para definir células-tronco retiradas de blastocistos com uma semana de desenvolvimento. (2/8/2011)