Bem-vindo à sexta extinção em massa. Para quem ainda estava na dúvida, vale uma olhadinha na última edição da revista Science: pesquisadores concluem que a valiosa biodiversidade da Terra está sendo dizimada de maneira implacável – não pelos recorrentes processos naturais de extinção; e sim pelas atividades antropogênicas.
É verdade que, na natureza, espécies surgem e desaparecem a todo instante. Mas, de quando em quando, esses eventos assumem proporções drásticas.
E o que é, afinal, uma extinção em massa? Não há consenso sobre as especificidades técnicas desse conceito, mas, em princípio, assume-se que seja um evento no qual, em uma janela de tempo relativamente breve, constata-se o desaparecimento de pelo menos 75% das espécies de um determinado grupo.
Já houve cinco grandes extinções em massa na Terra. Saiba mais sobre elas na linha do tempo interativa abaixo:
“Desde o início das navegações, por volta do século 16, o ser humano levou à extinção 322 espécies de vertebrados”, contabiliza o biólogo Mauro Galetti, do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Nos últimos 40 anos, diversas espécies já tiveram suas populações reduzidas em até 30%, e tudo indica que essa taxa deve aumentar”, complementa o pesquisador. Ele foi um dos autores do estudo publicado na Science, liderado pelo biólogo Rodolfo Dirzo, da Universidade de Stanford (EUA). A publicação é parte de uma série especial que a revista preparou sobre o tema.
A propósito, outro trabalho publicado recentemente na Nature já antecipara diagnóstico semelhante. De acordo com seu autor, o biólogo Anthony Barnosky, da Universidade da Califórnia (EUA), o caso dos répteis é emblemático: os últimos cinco séculos foram pano de fundo para a extinção plena de quase 50% das espécies desse grupo taxonômico.
Se o cenário é dramático para os animais vertebrados, melhor sorte não tem sido reservada aos invertebrados. “Analisamos o declínio populacional desse grupo e, nos 67% de espécies monitoradas, a queda chegou a 45% ao longo das últimas décadas”, diz Galetti.
“Pesquisadores já constataram que a velocidade de extinções provocadas pela ação antropogênica tem sido mil vezes superior à velocidade com que esse processo ocorreria naturalmente”, acrescenta o biólogo da Unesp. De acordo com a literatura científica, existem atualmente entre 5 e 9 milhões de espécies animais no planeta. “Estamos perdendo algo em torno de 11 mil a 58 mil delas a cada ano.”
Defaunação, muito prazer
Esse declínio populacional acelerado é um processo que a comunidade científica chama de defaunação. “A mídia e o público leigo bem conhecem o termo ‘desmatamento’, mas pouco é alertado sobre os efeitos da ‘defaunação’ em nosso planeta”, comenta Galetti.
Os dados recém-publicados na Science clamam por mais atenção para a preservação da diversidade do mundo animal. “Tudo indica que já estamos vivenciando a sexta extinção em massa”, assegura Galetti. E o Homo sapiens não é mera testemunha ocular. Ele é a causa provável do desaparecimento de boa parte das espécies que estão atualmente em franco declínio populacional. Desmatamento, crescimento desordenado, caça ilegal… São inumeráveis as atividades antropogênicas reputadas como provocadoras do atual cenário de defaunação.
“Uma de nossas maiores preocupações, por incrível que pareça, ainda é a caça ilegal”, diz o biólogo da Unesp. Segundo o pesquisador, a prática ainda acontece com espantosa frequência na Amazônia, no Pantanal, no cerrado e na mata atlântica. “Só na Amazônia, 60 milhões de animais são mortos a cada ano.” Em geral, são mamíferos abatidos para consumo ou comércio: antas, veados, macacos…
Tiro no próprio pé
A pergunta pode parecer ingênua, mas é necessária: por que, afinal, devemos nos importar com o desaparecimento de espécies animais? “Não é apenas porque os bichos são ‘bonitinhos’; é porque eles fornecem serviços ambientais imprescindíveis à sobrevivência de nossa espécie”, responde Galetti. “Nosso trabalho alerta que o declínio da população animal tem notável impacto sobre o bem-estar da própria humanidade”, destaca.
Exemplos disso não faltam. Um caso clássico é o da onça (Panthera onca), predador que regula, entre outras coisas, a população de capivaras nas regiões onde vive. O que poucos sabem é que a capivara carrega o carrapato-estrela (Amblyomma cajennense), um inoportuno aracnídeo que provoca a temida febre maculosa – doença infecciosa grave e potencialmente fatal para o ser humano. “Há muitos casos em São Paulo”, situa Galetti.
Logo, a relação é clara: dizimar a população de onças em um determinado bioma significa aumentar as chances de sermos contaminados por uma doença que pode nos levar à morte. Ainda existe um bom número de onças vagando pela Amazônia e pelo Pantanal. “Mas, em toda a mata atlântica, o número de espécimes já não passa de 50”, ressalta o pesquisador. Por isso, a onça é considerada um animal funcionalmente extinto: com número tão reduzido de indivíduos, a espécie não é mais capaz de exercer seu papel ecológico no ecossistema.
Outro exemplo é o do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia). Sua preservação é mais que um mero ato de benevolência – pois, na verdade, esse primata é um eficiente dispersor de sementes. E essas sementes são a gênese de uma rica vegetação que, por sua vez, servirá de filtro biológico para proteger rios e córregos que, em última instância, serão fonte de água potável.
“Nas florestas do estado do Rio de Janeiro, o mico-leão-dourado foi quase extinto”, lembra Galetti. Mas, graças a um bem-sucedido projeto de refaunação, foi possível recriá-lo em cativeiro e reinseri-lo em seu hábitat. Hoje, após três décadas de esforço, mais de mil macaquinhos vivem nas matas de onde estavam prestes a desaparecer. “É muito mais barato proteger esse primata do que investir em sistemas complexos para despoluir nossa água”, garante o biólogo da Unesp.
Falando nisso, poucos atentam para o papel importante que exercem anfíbios como sapos e pererecas. Eles regulam a população de algas. Portanto, também são essenciais para a manutenção da qualidade da água.
E quanto aos insetos? A defaunação de abelhas por causa de doses mortíferas de inseticidas – principalmente na Europa – tem deixado pesquisadores de cabelo em pé. Galetti explica: “Insetos polinizam 75% da produção agrícola do mundo; a redução na fauna de abelhas e outros polinizadores pode prejudicar a produção de alimentos.”
Ainda no terreno da agricultura, animais como morcegos e pássaros também controlam diversos tipos de pragas que podem arruinar plantações. “Nos Estados Unidos, os serviços ambientais prestados por esses predadores é estimado em 45 bilhões de dólares ao ano”, diz Galetti. “Não restam dúvidas de que a defaunação afeta o ser humano das mais diversas maneiras, desde a economia até a transmissão de doenças”, conclui.
Dívida ecológica: recuperação de espécies
Não adianta apenas preservar áreas naturais ou reflorestar territórios outrora degradados. É preciso que esses locais recuperem a biodiversidade animal. Por isso, são cada vez mais comuns os projetos de refaunação – que se baseiam, essencialmente, na reinserção de espécies ameaçadas em seus hábitats originais. A estratégia foi tema de outro artigo publicado no especial da Science.
Há diversos casos de sucesso no mundo. O do mico-leão-dourado, no Rio de Janeiro, é um deles. Na Europa, também se fala muito em iniciativas do tipo. Escoceses conseguiram recuperar, após um declínio populacional crítico provocado pela caça, os porcos selvagens – que exercem por aquelas bandas papel importante ao dispersar sementes e arar o solo.
E quanto à ideia – temerosa, segundo alguns – de reviver espécies já extintas por meio de técnicas de DNA? É o que cientistas chamam de desextinção (do inglês, de-extinction). O tema tem sido exaustivamente debatido ao longo dos últimos meses. Mas nada sugere que estejamos próximos de um consenso ético a respeito do assunto. “Há um detalhe”, lembra Galetti. “Mesmo se resgatada artificialmente, uma espécie que desapareceu há tanto tempo pode não conseguir voltar a exercer seu papel ecológico na natureza.”
Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line