George Leavitt tem seis anos, é portador da síndrome de Asperger (uma doença do espectro do autismo) e odeia brincar de colorir. Mesmo segurar os lápis de cera é difícil para ele, que tem dificuldades motoras. Um dia, George disse à sua mãe, a pintora Elisa Leavitt, que queria “pintar umas maçãs”. Ela lhe deu o material e ele pintou o quadro acima.
Impressionante? Elisa também achou. “Antes, só o que eu tinha era uma coleção de rabiscos do George”, conta ela à CH On-line. Orgulhosa do filhote, Elisa emoldurou a pintura e pendurou na sala de jantar (leia um relato dela sobre como a pintura ajuda seu filho a se expressar).
No artigo de capa da CH de maio, buscamos desvendar os mecanismos neurológicos e biológicos do autismo, que infelizmente ainda são em grande parte desconhecidos pelos cientistas.
No entanto, como é impossível abarcar todas as nuances de um tema apenas em uma reportagem, tivemos que deixar de fora alguns aspectos interessantes ligados a essa desordem. Um deles é justamente o que George fez com os lápis de cera: arte.
Savantismo
Não é raro que portadores de desordens neurológicas como o autismo pratiquem algum tipo de arte – e que sua expressão seja considerada de qualidade, por mais subjetiva que essa atribuição seja. O fato de pessoas com alguma deficiência intelectual demonstrarem um talento excepcional para uma atividade (artística ou não) é chamado de savantismo, ou síndrome de savant.
Só no Google, são mais de 3 milhões de resultados quando se procura os termos autism e art juntos (‘autismo’ e ‘arte’, em inglês). Há até um verbete sobre o tema na Wikipédia em língua inglesa.
Um dos artistas portadores de autismo mais famosos no mundo é o britânico Stephen Wiltshire: após uma viagem de helicóptero por Nova York, o rapaz portador da síndrome de Asperger desenhou toda a cidade, de memória. O rapaz tem obras expostas em museus de todo o mundo, da China aos Estados Unidos.
No Brasil, aparentemente, o reconhecimento público e as pesquisas sobre o tema ainda são incipientes. Médicos e cientistas que tratam diretamente com pessoas diagnosticadas com autismo, no entanto, afirmam ser comum que elas apresentem algum tipo de savantismo direcionado para a arte.
Um desses médicos é Estevão Vadasz, coordenador do Projeto Autismo no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. “Tenho uma lista com mais de 30 nomes de pacientes autistas também artistas”, conta ele.
Confira uma galeria de obras de arte
pintadas por portadores de autismo
Desenhando o autismo
Inspirada pela grande quantidade de bons trabalhos artísticos feitos por pessoas portadoras de autismo, a educadora e analista comportamental americana Jill Mullin escreveu o livro Drawing Autism (‘Desenhando o autismo’, em tradução livre).
A obra, sem previsão de lançamento no Brasil, contém dezenas de trabalhos feitos por pessoas autistas de todo o mundo. Cada desenho é acompanhado por uma pequena entrevista com o artista sobre o que o inspirou a fazer aquela obra.
Antes de publicar o livro, Mullin trabalhou durante 10 anos como supervisora clínica de pessoas diagnosticadas com autismo. “Nesse tempo, convivi com pessoas muito talentosas. Uma delas era um homem, de cujos desenhos eu gostava muito e que me inspiraram a fazer o livro”, conta ela em entrevista à CH On-line.
Drawing Autism é dividido em sete capítulos, escolhidos de acordo com as temáticas recorrentes percebidas por Mullin nos trabalhos analisados por ela. Há desde desenhos que expressam o isolamento sentido pelos artistas até aqueles que pintam sempre o mesmo tema.
“Em um caso, um artista desenhava exatamente o mesmo objeto mais de mil vezes!”, conta Mullin. No lado de cá, Vadasz conta experiências semelhantes: “Tenho uma paciente que desenha apenas dinossauros desde os quatro anos. Hoje, seus desenhos são excepcionais”, exemplifica.
Autismo é a causa?
Ao observar trabalhos tão interessantes feitos por pessoas autistas sem formação artística, parece inevitável levantar a questão: até onde o diagnóstico de autismo influencia de fato o talento ou a qualidade dos desenhos?
Como apresentamos na matéria da CH de maio, a ciência ainda não conhece com profundidade as características específicas de um cérebro autista. Por isso, é difícil explicar o savantismo artístico de alguns portadores dessa desordem.
“No final das contas, acho que os artistas apresentados no livro têm uma perspectiva diferente ou até mesmo um olhar ‘de fora’ sobre a arte, já que exploram o mundo de maneira diferente das outras pessoas”, opina Mullin.
Para Vadasz, o fato de pessoas autistas demonstrarem interesse por um assunto específico faz com que elas trabalhem esse assunto até a exaustão para se aperfeiçoar.
Segundo o médico, outras características também contribuem para o savantismo de pessoas portadoras de autismo. Memória fotográfica aguçada, atenção extrema ao detalhe em detrimento do todo. “E, claro, uma visão diferente do mundo, que faz com que eles atentem para elementos que nós não percebemos.”
Reconhecimento
No senso comum, a arte é entendida como uma forma de expressar uma visão de mundo particular. Mas ela também pode fazer com que o espectador da obra entenda mais sobre o próprio artista. No caso do autismo, essa contrapartida é fundamental.
“Examinar o trabalho de artistas autistas pode ajudar outras pessoas a se familiarizarem com as emoções mais comuns vinculadas ao autismo”, defende Mullin.
Mesmo com todas essas vantagens, Vadasz faz uma ressalva: é importante também que a pessoa autista seja estimulada a realizar outras atividades.
“Não é saudável deixar que crianças autistas só façam desenhos ou música, pois vão passar a vida focadas num objeto de interesse”, explica o médico. Para ele, é fundamental que se agregue a essa prática algum valor pragmático.
Esse valor pragmático pode significar, por exemplo, associar outra experiência à criação artística, como o orgulho de ver um trabalho numa exposição ou na parede da casa.
“A sensação de orgulho advinda da aprovação do outro pode ajudar as pessoas autistas a lidar melhor com o seu meio”, afirma Mullin. A experiência de George e seu quadro exposto na sala de jantar comprovam essa ideia.
Isabela Fraga
Especial para a CH On-line