Nascer: um verdadeiro parto

Cesarianas e procedimentos médicos desnecessários e de risco são a realidade cotidiana dos partos no Brasil. A situação vivenciada por mulheres em todo o país e já denunciada por muitos pesquisadores e profissionais de saúde volta à cena agora com a divulgação da pesquisa Nascer no Brasil, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz e que traz o maior levantamento já feito sobre gestações e nascimentos em território nacional.

O estudo, que durante um ano ouviu 23.984 mulheres de 191 cidades do país que tiveram seus filhos em hospitais de médio e grande porte da rede pública e privada de saúde, traz números alarmantes. A cesariana, um procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apenas para partos de risco, é quase regra no Brasil: 52% dos nascimentos são realizados com essa cirurgia, quando a taxa considerada aceitável é 15% (mais de três vezes menor).

Leal: “Mulheres estão sendo expostas a riscos e o sistema de saúde está tendo gastos desnecessários devido a uma cultura médica que prioriza a cesárea”

“Não existe justificativa clínica para um número tão alto de cesarianas; estamos falando de gravidezes normais, apenas 25% das entrevistadas apresentaram algum risco durante a gestação,” comenta a coordenadora do estudo, a médica Maria do Carmo Leal. “Essas mulheres estão sendo expostas a riscos e o sistema de saúde está tendo gastos desnecessários devido a uma cultura médica que prioriza esse tipo de parto.”

A pesquisadora aponta que a cesariana deve ser a última opção, pois pode trazer danos ao bebê e à mãe. “Nos últimos sete anos, estudos têm demonstrado que a cesariana está associada a um risco maior de morte durante o parto, além de ser um fator para o desenvolvimento de doenças como o diabetes e a asma no bebê e de privar a criança, no momento do nascimento, do contato com a flora bacteriana vaginal e intestinal da mãe, que garante o fortalecimento do seu sistema imune”, diz.

A cesariana pode ainda prejudicar gestações posteriores por deixar uma cicatriz no útero que pode dificultar a fixação do óvulo fecundado e interferir no desenvolvimento da placenta. 

Cesariana
Apesar de não ser a primeira opção da maioria das mulheres brasileiras, a cesariana é o tipo de parto mais comum no Brasil. (foto: Erich Schulz/ Wikimedia Commons)

Para outra autora do estudo, a médica Silvana Granado, a escolha médica pelas cesarianas pode ser explicada por questões práticas que nem sempre levam em consideração o melhor para a gestante. 

“Os médicos priorizam a cesariana porque assim conseguem fazer mais partos em menos tempo”, comenta. “Em vez de gastar 12 horas acompanhado um só parto normal, eles ficam livres para agendar vários. Em muitos hospitais de interior que visitamos existia, inclusive, o chamado ‘dia da cesárea’, que era quando o médico aparecia e marcava todos os partos da cidade.”

A pesquisa mostra que, na rede privada, o número de cesarianas é ainda maior, chegando a 88% dos nascimentos, contra 40% no sistema público. Para Granado, a diferença se deve, entre vários fatores, à fidelização das gestantes a um único médico que acompanha a gestação desde o início. 

Na rede privada o número de cesarianas é ainda maior, chegando a 88% dos nascimentos

“É comum que esse médico marque a cesariana de acordo com a sua agenda e para sua comodidade e que a mulher aceite para poder ter o filho com aquele profissional específico que conhece todo o seu histórico”, ressalta. 

Granado observa que no sistema de saúde público, a gestante não fica tão presa ao médico, pois recebe uma cartilha com todas as informações do acompanhamento pré-natal, de forma que qualquer médico disponível no momento do nascimento pode se atualizar sobre a situação e fazer o parto. “O ideal é que o médico saiba que ele não é o dono de nenhuma grávida e que as mulheres se conscientizem de que podem parir quando o bebê quiser, com qualquer profissional que esteja trabalhando no momento”, pontua.

Mudança de planos

Apesar de ser predominante, a cesariana não é a primeira opção de muitas mulheres. Segundo o estudo, apenas 28% das entrevistadas disseram desejar a cesariana desde o início da gestação, a maioria por temer as dores do parto.

O número de mulheres que escolheram a cesariana, no entanto, aumentou conforme a gravidez avançava, principalmente entre aquelas atendidas no setor privado de saúde. Durante o pré-natal, 36% já optavam pela cesariana e, ao chegar à maternidade, 67% tinham escolhido esse tipo de parto. 

“Muitas mulheres mudam de ideia por causa de um aconselhamento pré-natal inadequado”, diz Leal. “Infelizmente, muitos médicos não informam as gestantes dos riscos da cesariana e outros ainda incentivam esse tipo de parto.”

Planejamento
A pesquisa revela que a falta de planejamento reprodutivo no Brasil é muito frequente. (foto: Leonardo Sá/ Flickr – CC BY-NC 2.0)

Para Granado, uma prova de que o aconselhamento pré-natal é decisivo foi obtida durante a pesquisa ao se compararem os resultados do estudo com os números de cesarianas em um ‘hospital modelo’ do interior de São Paulo. Essa maternidade mudou seu modelo de atenção ao parto para um de tipo ‘humanizado’, informando às gestantes os benefícios do parto normal e disponibilizando alternativas não farmacológicas de alívio da dor durante o parto, como banhos de água quente. “Com esse modelo, houve uma redução significativa das cesarianas e melhora na saúde dos recém-nascidos”, afirma a médica.

Parto medicalizado

Mesmo quando o parto é normal, as gestantes não estão livres de riscos e desconforto. A pesquisa mostra que, além da falta de medicamentos e infraestrutura básica em muitos hospitais (66% deles não ofereceram nem a anestesia peridural às gestantes), impera no país um modelo de parto medicalizado e que ignora as recomendações baseadas em evidências de órgãos como a OMS. 

“As gestantes são submetidas a intervenções excessivas, não lhes oferecem água ou comida, elas não podem se movimentar nem ter o filho da maneira que querem”, comenta Granado. 

Apenas 5% das mulheres ouvidas tiveram um parto normal sem intervenções. Entre os procedimentos amplamente usados no Brasil, mas recomendados apenas em partos de risco, está a introdução de cateter para medicação intravenosa na grávida, realizada em 73,8% dos nascimentos, e a aplicação de ocitocina, hormônio que acelera o trabalho de parto ao induzir contrações e usado em 38% das entrevistadas que tiveram parto normal de baixo risco. 

Apenas 28% dos recém-nascidos saudáveis tiveram contato direto com a pele da mãe logo após o nascimento

Ainda mais prejudicial para a grávida e o bebê, segundo Leal, é a perfuração da bolsa (amniotomia). Essa operação, que também acelera o nascimento, foi realizada em 40% dos partos normais de baixo risco acompanhados pela pesquisa. 

Por outro lado, procedimentos considerados saudáveis são raramente adotados. Apenas 28% dos recém-nascidos saudáveis tiveram contato direto com a pele da mãe logo após o nascimento e 16% tiveram a chance de mamar no seio ainda na sala de parto.

Insatisfação e falta de planejamento

A coordenadora da pesquisa destaca que o excesso de procedimentos desnecessários e a falta de práticas consideradas saudáveis se refletem na satisfação das gestantes com o parto. O estudo revela uma alta insatisfação, principalmente entre mulheres de baixa classe social das regiões Norte e Nordeste, majoritariamente atendidas no sistema público de saúde. 

“A satisfação com ao atendimento é muito importante, principalmente quando levamos em conta que 26% das mães entrevistadas sofreram com depressão pós-parto”, comenta Leal. “As mulheres e os bebês brasileiros estão sendo desnecessariamente expostos a riscos durante o parto e isso precisa mudar. Não podemos mais nos prender a um modelo medicalizado que não respeita a hora e o modo natural de parir.”

O estudo indica ainda que a maioria das gestações no país não é planejada. Mais da metade das entrevistadas, 55%, não tinha programado engravidar e 30% não desejavam a gestação já corrente. Mesmo depois do nascimento do bebê, 9% se disseram insatisfeitas com a gravidez e 2,3% relataram ter tentado interromper a gestação.

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line

Confira também nossa série especial ‘Por um parto seguro’.