A polêmica e sensacional descoberta, divulgada pela Nasa, de uma bactéria ‘comedora de arsênio’ que contrariava as leis básicas da biologia e abria possibilidade de novas formas de vida fora da Terra se reduziu a mais um caso exemplar de como funciona a ciência. Dois novos estudos refutam a tão comentada pesquisa e batem o martelo: a tal bactéria não tem nada de outro planeta.
A pesquisa original, publicada na Science em 2010, foi anunciada com grande pompa e circunstância. Os autores do estudo indicavam que a bactéria GFAJ-1 trocava o fosfato (molécula formada por fósforo e oxigênio) presente em seu DNA por arsênio, um elemento altamente tóxico e abundante em seu hábitat natural, o Lago Mono, na Califórnia, Estados Unidos.
A descoberta era impressionante, pois até então nunca havia sido observado um ser vivo na Terra que não precisasse de fósforo, um dos seis elementos considerados básicos para formação do material genético e para a vida. O ineditismo abria espaço para a possibilidade de existência de vida diferente da conhecida na Terra, hipótese que foi alardeada pela Nasa e até mal interpretada por muitos meios de comunicação.
Agora, dois artigos publicados também na Science contrariam os resultados da Nasa e afirmam não só que a bactéria GFAJ-1 é incapaz de viver de arsênio e sem fosfato, como também não incorpora de fato a substância tóxica ao seu DNA.
A conclusão da pesquisa original da Nasa se deu depois de uma série de experimentos em laboratório em que cientistas gradativamente substituíram o meio de cultura das bactérias rico em fosfato por sais que continham arsênio. Eles observaram que mesmo nas maiores concentrações da substância tóxica, elas não morriam, mas incorporavam o elemento ao seu material genético.
O artigo admitia que os sais com arsênio usados na experiência também continham traços de fosfato, mas em quantidade muito pequena para garantir o crescimento das bactérias. Não havia dúvidas de que era a substância tóxica que assegurava a vida delas.
Na época, outros cientistas logo questionaram a validade do estudo. A maioria deles defendeu que a pesquisa continha erros metodológicos e alguns chegaram a tentar replicar os resultados sem sucesso.
No site Slate, o escritor Carl Zimmer reuniu críticas de vários pesquisadores da área. Um deles, o microbiologista Alex Bradley, da Universidade Harvard, contradizia os autores e afirmava que o DNA da bactéria só se matinha unido em função da presença dessa pequena quantidade de fosfato desconsiderada. O pesquisador destacava que no Mar Sargasso, no Atlântico Norte, já haviam sido observados microrganismos que cresciam com 300 vezes menos fosfato.
A crítica de Bradley agora se mostra correta. Experiências descritas em um dos novos trabalhos publicados na Science, conduzido por pesquisadores suíços, mostram que a bactéria não sobrevive sem fosfato. Para chegar a essa conclusão, a equipe observou culturas da mesma cepa de bactérias usadas pela Nasa em diferentes situações: com fosfato e arsênio, somente com fosfato em pequena quantidade e somente com arsênio.
“Ficou claro que as bactérias do estudo da Nasa só sobreviveram por causa da contaminação das amostras com fosfato”, diz a coautora do estudo Julia Vorholt, do Instituto de Microbiologia de Zurique. “Não encontramos evidências de que a GFAJ-1 substitua arsênio por fosfato; ela não quebra as leis da vida, mas, como outros microrganismos, se adapta às circunstâncias e consegue crescer mesmo com pouco fosfato e na presença elevada de arsênio.”
O outro artigo, de pesquisadores norte-americanos, vai além e contradiz também a ideia divulgada pela Nasa de que as bactérias incorporaram arsênio ao DNA. Com o uso de espectrometria de massa de alta resolução, a equipe observou pequenas moléculas de arsênio no núcleo dos microrganismos, mas, segundo eles, essas moléculas ficam soltas, e não ligadas à estrutura do material genético como acontece com o fosfato.
Paixão e descuido
Para a autora principal do estudo norte-americano, a microbiologista da Universidade Princeton Rosemary Redfield, uma das primeiras a questionar o estudo original em 2010, a diferença de resultados em relação ao estudo da Nasa se deve a descuidos no laboratório e erros de metodologia.
“O problema do trabalho anterior foi uma técnica desleixada”, afirma. “Não acredito que tenha havido má intenção, mas é provável que os autores estivessem demasiadamente apaixonados pela sua hipótese e por isso falharam em fazer os controles apropriados.”
Vorholt, do estudo suíço, lembra que o anúncio da pesquisa original pela Nasa foi um “passo infeliz” e reforça que o caso é exemplar do funcionamento da ciência. “Essa história serve para nos mostrar que o sistema científico é bem robusto e efetivo; um ano e meio depois da publicação original temos um grande grupo de dados sobre a GFAJ-1 coletados por pelo menos dois grupos independentes que nos permite entender melhor esse organismo e rejeitar a hipótese anterior”, diz.
A Science não retirou o artigo original de 2010, como costuma fazer quando há falhas graves ou indícios de má conduta científica, e definiu os novos estudos como “informação adicional”. Em carta aberta, o periódico declarou que “o processo científico é naturalmente autocorretor, posto que os cientistas tentam replicar resultados publicados.”
Redfield diz que para ela e sua equipe a questão está mais que terminada. Já para Vorholt, a bactéria pode não ser tão especial nem ter características de um ser de outro planeta, mas ainda vale ser estudada mais profundamente.
“A GFAJ-1 é uma bactéria muito interessante pela sua notável resistência ao arsênio; a bioquímica por trás dela é extraordinária e definitivamente tem que ser mais estudada”, comenta. “Saber mais sobre essa resistência pode nos dizer muito sobre os limites extremos em que a vida pode acontecer.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line