O ‘bando de Maomé’ e outros equívocos

Mesquita situada na cidade de Isfahan, no Irã. 

O islamismo é a religião que mais cresce em todo o mundo. Em evidência principalmente por causa da disputa entre palestinos e israelenses, a doutrina de Maomé ocupa grande espaço na mídia que, algumas vezes, caracteriza-a de maneira tendenciosa. Um estudo realizado na Universidade de São Paulo (USP) mostra que os estereótipos não são estimulados apenas pela imprensa: a pesquisa apontou erros nos textos sobre o Islã de livros didáticos de história que podem contribuir para formação de preconceitos nas crianças do ensino fundamental.

O estudo foi feito pela professora de história Ana Gomes de Souza, durante seu mestrado em Língua, Literatura e Cultura Árabe pela USP. A pesquisadora analisou 53 livros, editados de 1985 até 2004. Foram identificados erros em todos eles – desde divergências históricas e conceituais entre o conteúdo dos livros e as fontes oficiais islâmicas até o recurso a palavras de cunho depreciativo.

A pesquisadora comparou os módulos sobre islamismo dos livros analisados com fontes oficiais sunitas (um dos grupos decorrentes da divisão da religião após a morte de Maomé) – o Alcorão, a Tradição, o Consenso e a Medida. “As fontes sunitas englobam as xiitas e são a base de consulta, direcionamento e orientação de cerca de 90% dos muçulmanos, por isso as escolhi”, diz Ana.

Um dos livros analisados pela professora diz que o muçulmano obterá o paraíso após participar de guerras para converter à força os não-muçulmanos ao islamismo. Tal ideal de luta seria condenado pelo próprio Alcorão que, em seu segundo livro, proíbe ao muçulmano impor sua religião a qualquer pessoa.

Outro erro grave seria a associação equivocada da palavra jihad com a noção de “guerra santa”. O termo árabe jihad se refere a qualquer tipo de esforço pessoal, e a idéia de guerra santa não aparece em nenhuma das fontes islâmicas pesquisadas. Mais um exemplo de erro na linguagem com conotação depreciativa é encontrado num dos livros que diz que Maomé foi com seu “bando” para Meca. Em um erro histórico crasso, um dos livros diz que a Hégira ocorreu de Medina para Meca, quando foi exatamente o contrário.

Página do Alcorão, uma das fontes oficiais islâmicas consultadas no estudo.

“Geralmente o material didático representa ‘o livro da verdade’ para o aluno: ele nunca erra, nunca se equivoca”, afirma Ana. “Se o livro escolar traz uma informação errada e o professor não está preparado para apontá-la, ela certamente será aceita como verdadeira pelo aluno, que pode vir a descobrir seu equívoco só anos mais tarde, ou até nunca.”

Entre os livros analisados na pesquisa estão, inclusive, alguns dos distribuídos gratuitamente em toda a rede pública, escolhidos pelo Programa Nacional do Livro (PNLD). Tal programa edita um guia de livros didáticos, após a Secretaria de Educação Básica avaliar pedagógica e sistematicamente todas as obras.

Um fato, muitas versões
O escritor de manuais didáticos de história para o ensino médio Gilberto Cotrim explica que, para a confecção dos livros, os autores consultam obras de historiadores especializados em cada temática abordada. “Um bom autor deve escolher fontes de estudo confiáveis, legitimadas pelo meio acadêmico“, conta Gilberto. “Eu não ousaria ler o Alcorão para escrever meus livros. Não posso confiar numa tradução qualquer e não sei ler em árabe. Além disso, os livros religiosos são cheios convicções filosóficas muito específicas. Prefiro ler obras de historiadores especialistas na cultura islâmica.”

“O campo da história é muito arenoso, cheio de dúvidas e diferentes versões para os fatos”, continua Gilberto. “O islamismo é um tema carregado de ideologia, o que direciona o foco dos autores de maneiras diferentes. No entanto, nosso objetivo é ser o mais neutro possível, deixando de lado, no momento da escrita, crenças pessoais.“

Rosa Maria Mattos
Ciência Hoje On-line
19/04/2006