O improvável uso da maconha

 Motivo de controvérsias pelo mundo, o uso medicinal de compostos da planta Cannabis sativa – ou, simplesmente, maconha – já foi discutido para uma variedade de condições neurológicas e mentais, incluindo transtornos de humor, memória e apetite, além do alívio das dores. Uma pesquisa recente realizada no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBCCF/UFRJ), no entanto, abre portas para estudar sua aplicação em outra área do corpo humano: o sistema renal. Resultados preliminares in vitro demonstraram que substâncias próximas às da planta são capazes de proteger o tecido dos rins e controla o transporte de sódio em suas células, o que poderia ser um caminho para tratar problemas como as insuficiências renais e a hipertensão.

O uso de substâncias presentes na maconha para o desenvolvimento de tratamentos médicos ganhou respaldo na comunidade científica após a descoberta do sistema endocanabinoide, um mecanismo presente nos mamíferos, incluindo os humanos, que interage com substâncias presentes na planta, os canabinoides. Com o avanço das pesquisas na área, descobriu-se que não só nosso corpo interage com os compostos da Cannabis, como produz também substâncias semelhantes, que foram chamadas endocanabinoides.

O uso de substâncias presentes na maconha para o desenvolvimento de tratamentos médicos ganhou respaldo na comunidade científica após a descoberta do sistema endocanabinoide

“A descoberta dos canabinoides endógenos mudou a forma convencional de se entender os transmissores químicos”, conta Ricardo Augusto de Melo Reis, biólogo do IBCCF/UFRJ e um dos autores do estudo que relaciona essas substâncias ao transporte de sódio em células renais. “Os endocanabinoides não são armazenados em vesículas químicas, como os neurotransmissores convencionais, mas sintetizados sob demanda, ou seja, quando necessários”.

Tanto os canabinoides quanto os endocanabinoides atuam na comunicação celular, ativando receptores químicos que desencadeiam determinados processos nas células. Um desses processos, descobriu-se, está associado à absorção de sódio, desencadeada pela interação entre endocanabinoides e o receptor CB1, que faz parte do sistema endocanabinoide. O trabalho foi aceito para publicação no British Journal of Pharmacology e já está disponível para consultas.

Resultados inesperados

Originalmente, a pesquisa do IBCCF/UFRJ investigava como algumas moléculas de gordura poderiam ajudar a proteger e regenerar o tecido renal. O grupo específico de moléculas estudadas era o dos lipídios bioativos – isto é, lipídios que, além de desempenharem as funções já conhecidas de proteção da célula e armazenamento de energia, são capazes de se ‘comunicar’ com outras substâncias e responder a sinais –, no qual estão inseridos os endocanabinoides Anandamida e 2-Aracdonoil Glicerol. Os dois já haviam demonstrado, em estudos com animais, a capacidade de ajudar na regeneração do tecido renal.

Cultura de células
O estudo foi realizado em culturas de células com endocanabinoides sintéticos. (foto: Luciana Veneziani / IBCCF)

A novidade trazida pela pesquisa recém-divulgada foi uma análise aprofundada da ação dos dois endocanabinoides em nível celular, realizada a partir de culturas de células do túbulo proximal renal, o maior ‘absorvedor’ de sódio em nosso corpo. “Neste trabalho, mostramos pela primeira vez a modulação por endocanabinoides de uma proteína transportadora importantíssima para a fisiologia renal, que é a bomba de sódio e potássio”, ressalta Marcelo Einicker Lamas, também biólogo do IBCCF/UFRJ. “Essa bomba é a principal responsável pela reabsorção de sódio filtrado pelos rins e, por isso, tem uma função muito importante em eventos fisiológicos que atuam no controle da pressão arterial, por exemplo”.

Bomba de sódio e potássio
A bomba de sódio e potássio é um mecanismo celular que permite o transporte ativo dessas substâncias para dentro (no caso do potássio) e para fora (no caso do sódio) da célula. Os endocanabinoides estudados são capazes de influenciar o funcionamento da bomba, aumentando a absorção de sódio. (imagem: Wikimedia Commons)

Resumindo, o que a Anandamida e 2-AracdonoilGlicerol podem fazer é ‘abrir’ ou ‘fechar’ a célula à entrada e saída de sódio – um mecanismo importante, pois do excesso de sódio no organismo decorrem vários problemas de saúde. Na prática, os dois endocanabinoides poderiam ser utilizados no desenvolvimento de novos tratamentos para a insuficiência renal ou perda de funções dos rins, causada por diabetes e hipertensão, entre outras condições clínicas. “Vale ressaltar que o número de novos casos de insuficiência renal aumenta a cada ano e, com ele, os gastos do governo com hemodiálises”, pontua Lamas. A insuficiência renal grave não tem cura e, para os pacientes graves, a única alternativa é o transplante.

Uma hipótese que ainda precisa ser investigada é que o uso de canabinoides – compostos presentes, estes sim, na maconha – possa ter o mesmo efeito sobre o tecido renal. Lamas não descarta a possibilidade. “Está demonstrado que o rim possui a maquinaria de síntese e degradação dos endocanabinoides. Sabemos, também, que a presença ou não dos endocanabinoides modula eventos celulares e fisiológicos que repercutem para todo organismo, então, quem sabe?”, especula.

Everton Lopes
Instituto Ciência Hoje/ RJ