Curiosidade, busca de prazer, energia para dançar a noite toda. Esses e outros motivos levam boa parte dos jovens a fazer uso do ecstasy no cenário da música eletrônica. Mas muitos optam por não fazê-lo ou por interromper o consumo da droga, seja por questões familiares e/ou religiosas, em função da carreira ou pelo cansaço causado depois que passa o efeito da droga.
Para chegar a essas razões, pesquisadoras do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) realizaram um estudo qualitativo com frequentadores de festas rave – contexto apontado em outras análises como locais de fácil acesso a essa substância. O trabalho foi realizado durante o mestrado da psicóloga Maria Angélica de Castro Comis, orientado pela também psicóloga e farmacêutica Ana Regina Noto.
“A ideia surgiu a partir de alguns estudos que já estavam sendo realizados na época sobre o perfil de usuários de ecstasy, justamente para pensar em campanhas para a prevenção do uso da droga ou para a prevenção dos riscos desse uso”, explica Comis. “Eu também tive alguns amigos que estavam usando ecstasy com muita frequência. Então eu já sabia o porquê de as pessoas usarem a droga. Eu queria entender um pouco melhor por que algumas paravam de usar.”
Para selecionar os participantes do estudo, as pesquisadoras usaram o método conhecido como ‘bola de neve’, no qual cada entrevistado indica outro possível candidato que se enquadre no perfil adequado. Nesse caso, os critérios eram a pessoa ter tido pelo menos uma oportunidade de experimentar a droga, mas nunca ter usado, ou ter usado mais de cinco vezes na vida, mas estando há pelo menos um ano sem fazê-lo.
Os primeiros contatos foram feitos com pessoas-chaves – organizadores, promotores e DJs – em raves e em outras festas. A partir delas, Comis foi chegando a outras. Ela conta que, inicialmente, o grupo dos não-usuários foi mais difícil de encontrar, uma vez que as pessoas-chave indicavam mais quem já havia usado ecstasy. “Isso pode ser explicado pelas redes de contato; as pessoas que usam ecstasy acabam se agrupando, não por influenciar outras pessoas a usar, mas por um movimento de aproximação entre os usuários”, justifica a orientadora.
Depois de encontrar os primeiros não-usuários (NU), Comis descobriu que eles também tinham sua própria rede de contatos nas festas. Assim, as entrevistas foram iniciadas com esse grupo e com o de pessoas que tinham feito o uso mais de cinco vezes, os ex-usuários moderados (EX-US). “Já durante as entrevistas, descobri um terceiro grupo de pessoas que tinham usado ecstasy uma ou duas vezes, e não mais; é o grupo de experimentadores (EXP)”, ressalta a psicóloga.
A percepção do risco
A amostra total do estudo foi composta de 53 voluntários anônimos – 23 NU, 12 EXP e 18 EX-US –, sendo 26 anos a média de idade dos dois primeiros grupos e 28 a do terceiro. As entrevistas foram realizadas entre 2009 e 2010.
De acordo com os dados colhidos, todos os três grupos percebem que o ecstasy é uma droga perigosa, que pode levar a problemas sociais e físicos. Entre os experimentadores e os ex-usuários, muitos estavam terminando a faculdade ou eram profissionais liberais, publicitários, pós-graduandos, entre outras carreiras. “Eram pessoas já cansadas de se arrumar para ir a festas de longa duração, de dançar a noite toda e, principalmente, das ressacas muito longas, o que dificultava a volta delas para suas rotinas e para o trabalho”, esclarece Comis.
Quanto ao grupo de não-usuários, cujos representantes nunca tinham usado ecstasy apesar das oportunidades de fazê-lo, muitos atribuíram sua recusa aos temores de dependência da droga, de agravamento de doenças – como problemas cardíacos já existentes – e o encorajamento a comportamentos de risco – como o sexo sem proteção. Não-usuários e experimentadores também destacaram os valores religiosos e a influência da família como fatores relevantes para suas decisões sobre o não uso de ecstasy.
“Outro aspecto importante é que muitos entrevistados tinham medo de experimentar ou usar mais uma vez porque muitos comprimidos eram adulterados. Não havia um controle de qualidade para saber quais as substâncias que continham nos comprimidos e sobre os efeitos delas”, ressalta a pesquisadora.
Os resultados do estudo foram publicados no periódico BMC Public Health.
Da teoria para a ação
Após o término do mestrado, como desdobramento do estudo, Comis passou a coordenar o projeto ResPire, cuja equipe realiza intervenções para reduzir os danos sociais e à saúde dos usuários de drogas. “Montamos o programa de redução de risco na ONG É de Lei, da qual eu faço parte”, conta a pesquisadora. “Existe um projeto semelhante na Bahia, o Coletivo Balance, que contribuiu para a criação do ResPire”, acrescenta.
A equipe da ONG monta um estande em festas previamente selecionadas, no qual há o fornecimento de água, pirulitos, preservativos e a disseminação de informações sobre o uso de drogas. “É para a pessoa que vai prestar ajuda saber o mecanismo de ação da substância, para que o usuário passe menos mal”, explica a psicóloga. No estande do projeto, também há um espaço de repouso para as pessoas que estiverem passando mal após ingerir algum tipo de droga.
O planejamento dessas atividades teve como base o que muitos entrevistados do estudo falaram sobre as ressacas dos dias seguintes e sobre passar mal durante o efeito do ecstasy. Além disso, a pesquisa mostrou que o uso da droga não se limita às festas eletrônicas, ocorrendo em outros contextos, como micaretas e rodeios. Isso contribuiu para a diversificação dos cenários que tiveram o estande.
Comis acredita que os resultados de seu estudo também podem ser usados para influenciar a realização de testes dos comprimidos de ecstasy. “Às vezes, a pessoa acha que está tomando ecstasy, mas está tomando outra substância, que pode ser mais prejudicial a ela”, ressalta.
O projeto ‘ResPire’ foi financiado de 2011 a 2012 por um edital do Ministério da Saúde, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNDOC). O programa continua atuando sem financiamento enquanto aguarda a abertura de um novo edital.
Déborah Araujo
Ciência Hoje On-line