“Sem terra e sem lei.” Esse título foi publicado pela Veja de 10/05/2000, em alusão ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas bem que poderia ter sido escrito por um grande jornal do século 19 sobre movimentos de contestação como a revolta de Canudos. Essa é a conclusão da pesquisadora Lucília Maria Sousa Romão, da Universidade de São Paulo. Ela avaliou o discurso da imprensa e de setores dominantes da sociedade sobre o MST e constatou que o movimento é retratado hoje com os mesmos termos já destinados aos negros dos quilombos e aos rebeldes do Contestado ou das Ligas Camponesas.
“O discurso oficial busca deslegitimar as lutas sociais e chamar a atenção para os transtornos que elas causam à paz e à democracia”, diz a pesquisadora. Com as ferramentas da análise do discurso de matriz francesa, Lucília avaliou matérias de revistas e jornais sobre o MST, fez entrevistas no acampamento em Matão (SP) e pesquisou livros e documentos que resgatam a retórica sobre antigos movimentos de luta pela terra.
O uso de termos como quadrilha, bando armado, bandido e fora da lei é recorrente e mostra como o discurso é usado com o intuito de criminalizar o camponês. A intenção é classificá-lo como contraventor e definir sua luta como um caso de polícia. O mesmo mecanismo é adotado para diminuir os movimentos, pelo uso de expressões como alguns poucos baderneiros ou ainda meia dúzia de gatos pingados , como Fernando Henrique se referiu aos sem-terra.
Lucília identificou uma formação discursiva dominante — em que os sentidos são direcionados de forma a silenciar e apagar a luta política e a mobilização dos excluídos — e uma dominada — que apresenta um movimento de resistência com tom reivindicatório — e percebeu muitos contrapontos entre elas. “Esses confrontos têm histórico na memória discursiva brasileira”, ressalta a pesquisadora.
Enquanto as canções dos negros dos quilombos expressavam o desejo de liberdade e terra, as cartas dos senhores tratavam-nos como baderneiros . Em Canudos ocorre o mesmo confronto, pois os jornalistas que cobriram a luta eram ligados ao Estado ou à esfera militar. Não à toa, a maior descrição do acontecimento está em Os Sertões , de Euclides da Cunha, que apresenta discrepâncias em relação ao Breviário de Antônio Conselheiro , a visão dos rebelados.
Embora o mesmo ocorra com os sem-terra — o discurso da mídia sobre o MST difere bastante daquele da organização sobre si mesma –, esse movimento possui vantagens em relação aos anteriores. Além do discurso coeso, com uma forte retórica de resistência, o MST tem muita visibilidade por estar presente em todo o país, ter liderança descentralizada e dispor de um suporte de informações próprio (revista, jornal, site, rádio comunitária).
Lucília atribui a força do discurso oficial ao fato de ele ser revestido com a imparcialidade jornalística. “Muitos são influenciados por essa fala que tem suposto poder de autoridade”, diz a pesquisadora. “E acabam tomando para si essa perspectiva sobre o que são os excluídos e o que os motiva.” Por isso, interpretar criticamente a construção das mensagens jornalísticas é fundamental para que a sociedade perceba as lacunas entre o discurso oficial e a realidade que se apresenta.
Gisele Lopes
Ciência Hoje on-line
12/02/03