Ser mordido por uma mamba-negra não deve ser uma experiência agradável – e muito provavelmente seria sua última. Isso porque a cobra, natural da África, possui um dos venenos mais tóxicos conhecidos. Porém, um novo peptídeo encontrado em meio a toda essa letalidade pode dar origem a novas substâncias analgésicas. Em ratos, os mambalgins mostraram uma eficiência similar à da morfina, mas sem seus efeitos colaterais. Além disso, por agirem sobre estruturas moleculares que nunca haviam sido associadas à sensação de dor, podem servir para a identificação de novos alvos para futuros tratamentos.
O estudo, desenvolvido na França, foi publicado na edição desta semana da revista Nature. A nova classe de peptídeos corresponde a apenas 0,5% do conjunto de substâncias que formam o veneno da mamba-negra. Os mambalgins (mambalgin-1 e mambalgin-2) inibem a atividade de estruturas do sistema nervoso denominadas canais iônicos sensíveis a ácidos (ASICs, na sigla em inglês). Esses canais são responsáveis pelo transporte seletivo de íons, especialmente de sódio, através da membrana celular de neurônios – processo fundamental para a transmissão dos sinais elétricos.
“Não sabemos se os mambalgins desempenham algum papel no veneno da cobra ou qual efeito produzem no corpo das presas, mas é muito instigante que um veneno tão mortal também contenha uma porção pequena de um poderoso analgésico não tóxico”, afirma uma das autoras do estudo, a fisiologista Anne Baron, da Universidade de Nice Sophia Antipolis. “Seu potencial contra dor se mostrou comparável ao dos derivados da morfina, sem, no entanto, envolver receptores opioides, relacionados aos muitos efeitos colaterais da substância.”
A aplicação clínica da morfina pode levar a problemas como diminuição da capacidade respiratória, constrição das pupilas, rigidez muscular, sedação, euforia e até dependência química.
Além de identificar os peptídeos, o estudo também traz novos conhecimentos sobre a fisiologia molecular da dor e abre novas perspectivas para seu combate. Muitos ASICs são reconhecidamente associados à transmissão da sensação de dor, tanto nos nociceptores (células nervosas especializadas nesse tipo de sinal), quanto em neurônios do sistema nervoso central, que conduzem a informação dos nociceptores até o cérebro.
No entanto, os mambalgins atuam sobre canais de íons que nunca haviam sido relacionados a essa sensação, denominados ASIC1a, ASIC2a e ASIC1b. “A ciência já havia relacionado outros canais de íons à sensação de dor, mas essas associações são inéditas”, comemora Baron. “Por isso, o estudo desses canais e de substâncias que atuem sobre eles pode dar origem a novas classes de analgésicos”, acredita.
Sobre ratos e cobras
Os pesquisadores avaliaram a ação da substância no alívio da dor a partir de testes com ratos. Soluções com os mambalgins eram injetadas nos animais por diversas vias (como subcutânea e intracerebral) e a sensibilidade dos roedores era medida a partir de suas reações a estímulos de dor aguda e dor inflamatória.
“Não sabemos ainda se poderemos repetir, em humanos, os bons resultados obtidos com os ratos”, pondera Baron. “Mas as vias neurológicas associadas à dor são parecidas no homem e nesses animais, o que nos dá confiança no seu potencial para combater a dor.”
Ela pondera, no entanto, que ainda há muitas etapas a serem vencidas para uma aplicação comercial da molécula. O próximo passo será a realização de mais testes pré-clínicos que avaliem seu potencial para o alívio de outros tipos de dor, como dores crônicas, e com outras vias de administração.
“Há muitos desafios nesse caminho”, avalia. “Por exemplo, sua própria natureza de peptídeo pode dificultar a manipulação dos mambalgins pela indústria famacêutica, por serem pouco estáveis e difíceis de administrar oralmente. No entanto, a química de hoje é boa o suficiente para superar esse tipo de barreira.”
Baron lembra que, apesar de se tratar de um fato raro, essa não é a primeira vez que substâncias analgésicas são identificadas no veneno de animais. Até agora, a mais notável delas não vem de cobras, mas de caracóis marinhos, e é utilizada no combate à dor crônica.
A mamba-negra ou mamba-preta (Dendroaspis polylepis) é uma das cobras mais venenosas do mundo: sua taxa de mortalidade, sem tratamento, é de quase 100%, levando a presa à morte de minutos a poucas horas depois da mordida. Ela pode ser encontrada em boa parte da África e é uma das mais velozes serpentes do planeta, podendo se deslocar sobre o solo em velocidades de até 20 km/h. Seu nome está relacionado à coloração da parte interna da sua boca – uma ameaçadora bocarra negra. A espécie ficou famosa em 2003 e 2004, por aparecer (como na imagem acima) nos filmes da série Kill Bill, do cineasta Quentin Tarantino, e servir de codinome para a personagem principal da produção, Beatrix Kiddo, interpretada pela atriz Uma Thurman.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line