O universo em gama

Exatos 60 anos depois de um astrofísico britânico apontar para o espaço, em uma noite sem luar, uma lata de lixo dotada de um espelho em seu fundo e de um sensor de luz em sua abertura, um projeto internacional inicia sua jornada para, em essência, fazer o mesmo que aquele equipamento peculiar: observar o céu para desvendar a origem de invasores cósmicos. O Brasil participa do experimento.

O CTA (sigla, em inglês, para Rede de Telescópios Cherenkov) será formado por dois conjuntos (um no hemisfério Norte; outro no Sul) de telescópios – apesar do nome, são, na verdade, espelhos côncavos gigantescos, com formato de antenas parabólicas.

Guardadas as proporções, a função das duas redes de telescópios do CTA será a mesma daquela lata de lixo – talvez, a mais famosa da história da ciência –, concebida e instalada por John Jelley (1918-1997): capturar a luz extremamente tênue gerada pela interação da radiação cósmica com átomos da atmosfera terrestre. No caso, os invasores são os raios (ou radiação) gama, os membros mais energéticos da família das ondas eletromagnéticas, que inclui também as ondas de rádio, as micro-ondas, o infravermelho, a luz visível, o ultravioleta e os raios X.

Lata de lixo
A lata de lixo mais famosa da história da ciência: o equipamento quase caseiro iniciou a astronomia moderna de raios gama. (foto: W. Galbraith e J. Jelley)

A chegada de um raio gama no alto da atmosfera dá início a uma cascata de partículas (basicamente, elétrons e pósitrons) que, por sua vez, geram mais raios gama, em um processo que se multiplica por quilômetros, até atingir o solo. Rumo ao chão, essa chuveirada subatômica emite, por viajar com velocidade maior que a da luz no ar, um tipo de radiação (luz) denominada Cherenkov – homenagem ao físico soviético Pavel Cherenkov (1904-1990), que levou o Nobel de Física de 1958 pela descoberta do fenômeno.

Ao observar esses flashes extremamente rápidos – duram cerca de 3 bilionésimos de segundo – e invisíveis para o olho humano, os telescópios do CTA poderão apontar com precisão nunca atingida as fontes no céu emissoras de radiação gama. Esse equipamento não poderá trabalhar em noites muito claras, pois a luz do luar ofusca – e pode até queimar – os detectores de luz (fotomultiplicadoras), extremamente sensíveis.

Dez vezes mais sensíveis

No hemisfério Sul, os telescópios do CTA irão se espalhar por uma área de 10 km2 e estarão voltados para caçar galáxias distantes emissoras de raios gama. No Norte, ocuparão 1 km2, e o alvo serão fontes galácticas que funcionam como aceleradores de partículas de altíssimas energias.

Cada rede será composta por telescópios grandes (24 m de diâmetro), médios (12 m) e pequenos (6 m). Estes últimos ficam na periferia da área ocupada pela rede, mas são os responsáveis por capturar a luz Cherenkov gerada pelos raios gama ultraenergéticos.

Em conjunto, as duas redes pretendem multiplicar por 10 a sensibilidade de outros observatórios terrestres semelhantes, como o H.E.S.S. (Namíbia), o Magic (Ilhas Canárias) e o Veritas (EUA). O CTA pretende localizar cerca de mil fontes dessa radiação, contra as cerca de 150 hoje conhecidas.

CTA
Acima, fontes de raios gama identificadas pelo H.E.S.S. Abaixo, como a mesma região do céu pretende ser vista pelo CTA, com cerca de 1 mil fontes dessa radiação. (imagem: H.E.S.S./ CTA)

A localização de fontes de raios gama não é tarefa das mais simples. A primeira delas – e a mais intensa – só foi identificada em 1989: a nebulosa do Caranguejo, uma nuvem de gás em cujo centro há um pulsar (estrela pequena e densa que, em alta rotação, emite pulsos periódicos de radiação).

O CTA deve, segundo seus organizadores, não só revelar mais detalhes das fontes de radiação gama hoje conhecidas (pulsares, estrelas binárias, supernovas etc.), mas também, quem sabe, descobrir novas. Também se espera que os dados do CTA ajudem a entender um dos maiores mistérios da ciência atual: a matéria escura, que responde por cerca de 25% do ‘recheio’ de massa do universo.

Participação brasileira

Cada conjunto de 60 telescópios sairá por cerca de 200 milhões de euros (cerca de R$ 500 milhões). Segundo os organizadores, preço bem razoável, dada a envergadura e a pauta científica do empreendimento. A Europa elegeu o CTA como um dos principais projetos científicos deste início de século.

O Brasil está no experimento. E tem o maior interesse em que o CTA fique neste continente

O Brasil está no experimento. E tem o maior interesse em que o CTA fique neste continente. Concorrem aqui dois locais na Argentina e um no Chile – a altitude ideal para o CTA é entre 2 mil e 2,5 mil m. Caso o cenário América do Sul prevaleça, o volume de verbas que o Brasil destinará ao experimento será maior, pois parte dos projetos (de física e engenharia) deverá ser repassado à indústria brasileira, como é o caso dos protetores de vento para cada um dos telescópios – a estrutura desses gigantes não pode ser muito fraca, pois se deformaria sob a ação de ventos fortes, nem muito robusta, o que tornaria os telescópios pesados demais para se mover, encarecendo sua construção.

Um pequeno comitê científico deverá decidir até o fim deste ano onde serão os locais das duas redes. As chances da América do Sul são muito boas, dizem os brasileiros envolvidos no CTA. Alguns motivos: boa fase econômica do Brasil, fatores geográficos (boa altitude dos locais), clima (muitas noites sem chuva e nebulosidade), infraestrutura (estradas asfaltadas, proximidade de hotéis, hospitais, restaurantes etc.) e a presença de grandes projetos científicos tanto na Argentina (Laboratório Auger para o estudo de raios cósmicos) quanto no Chile (grandes telescópios, com o Gemini, Soar e VLT).

O CTA deve começar a funcionar em 2018 e coletar dados por, pelo menos, 10 anos

O sítio concorrente no hemisfério Sul é a Namíbia (África), onde funciona o H.E.S.S. Já em clima de eleição, participantes brasileiros do CTA apontam desvantagens no outro candidato: fica em área muito isolada, a cerca de duas horas, de carro, em estrada de terra, do centro urbano mais próximo.

O CTA deve começar a funcionar em 2018 e coletar dados por, pelo menos, 10 anos.

No Brasil, participam do CTA o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e o Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ambos na cidade do Rio de Janeiro, e o Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo, em São Paulo (SP), e o Instituto de Física de São Carlos, também da USP, em São Carlos.

 

Clique aqui para ver uma animação que mostra aspectos gerais do CTA

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ