As ciências sociais – muitas vezes tratadas como um bloco homogêneo, principalmente quando contrapostas às ciências ditas ‘duras’ – são múltiplas: debruçam-se sobre fenômenos distintos, possuem metodologias específicas e trilham caminhos nem sempre convergentes.
Qualquer tentativa de fazer um balanço do campo deve necessariamente levar em conta essa diversidade. Foi o caso da mesa-redonda sobre ciências sociais realizada no âmbito do simpósio ‘Avanços e Perspectivas da Ciência no Brasil, América Latina e Caribe’, promovido pela Academia Brasileira de Ciências na semana passada, no Rio de Janeiro.
Coordenada pelo historiador José Murilo de Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a mesa reuniu sociólogo, antropólogo e cientista político para uma reflexão conjunta – mas setorizada – de áreas que lutam para demarcar território na arena científica e, ao mesmo tempo, não abrem mão – ou não deveriam abrir, na opinião dos participantes – de seu caráter interpretativo intrínseco.
Wilson Trajano Filho, representando a antropologia, traçou um panorama dos avanços na área na última década. Em termos de programas e números de pós-graduados, o campo cresceu mais de 100% no período. A Associação Brasileira de Antropologia reúne cerca de 2 mil membros, o que faz da comunidade de antropólogos do país a terceira maior do mundo.
“A antropologia é um campo consolidado e dinâmico no Brasil”, afirmou Trajano, que é pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Para ele, uma das características mais marcantes de sua área no país é o localismo exacerbado – o que chamou de “obsessão pelo Brasil”. “A produção antropológica brasileira sobre questões não brasileiras é ínfima”, ressaltou.
Apesar do localismo, Trajano vê um movimento crescente de internacionalização da antropologia brasileira, no sentido de que há uma circulação grande de estudantes e pesquisadores brasileiros fora do país e vice-versa. No entanto, em termos de publicação, os números deixam a desejar.
Na sua avaliação, a relativamente tímida participação brasileira na produção global se justifica pelo problema da língua – o inglês ainda é um empecilho –; pelo viés localista do Qualis – revistas nacionais estão em melhor posição no ranking da Capes do que publicações internacionais de maior qualidade –; e pelo tamanho da comunidade – “por ser muito grande, torna-se quase autossuficiente, o que é bom por um lado, mas se paga um preço”, diz Trajano.
No geral, porém, suas perspectivas para a área são otimistas: há mais recursos, uma cultura acadêmica mais forte e uma comunidade em expansão.
Crescimento dinâmico e desigual
Na sociologia, o fluxo do desenvolvimento tem trajetória mais errante, variando de acordo com as temáticas em questão. O cenário da área foi pintado pelo sociólogo Renan S. de Freitas, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Na sua avaliação, o maior avanço real na sociologia se deu no campo da mobilidade social, com o surgimento de modelos estatísticos mais sofisticados, bons bancos de dados e os indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Já no campo da religião, Freitas identifica um crescimento menos linear, marcado por mudanças constantes de enfoques teóricos. Um exemplo seria a sucessão de teorias usadas para explicar a explosão do pentecostalismo no Brasil. Se antes se considerava este um fenômeno típico de sociedades em transição – relacionado à imigração –, hoje ele encontra mais respaldo na teoria da escolha racional.
No que tange à criminalidade – outra área abordada por Freitas –, o quadro traçado também pende para o lado do dinamismo. De acordo com o sociólogo, a comunidade que se dedica à questão busca uma renovação constante da agenda de investigação.
Postura conservadora e positivista
No terreno da ciência política, rupturas mais significativas seriam bem-vindas. Para Renato Lessa, cientista político da Universidade Federal Fluminense e diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje (ICH), o campo encontra-se deslocado, cada vez mais distante de suas origens.
Resgatando a natureza do pensamento político, Lessa enfatizou o caráter preditivo e utópico do campo, que, desde seus primórdios na Grécia Antiga, combinou esforços de descrição e de prescrição, movido pelo impulso de imaginar o que seriam as melhores bases para uma sociedade boa e justa.
Isto é, no entanto, o pensamento político em sua essência, e não aquele praticado hoje no Brasil – ao menos no âmbito das principais correntes de pesquisa no campo.
Iniciado por ensaístas no momento de surgimento do país, o pensamento político no Brasil foi, durante muitos anos, marcado pela pluralidade, indisciplina formal e por estilo intelectual generoso e fértil.
A partir de meados do século 20, porém, na onda da virada positivista das humanidades ocorrida nos Estados Unidos, esse quadro foi sendo substituído por uma institucionalização e fragmentação excessiva dos estudos no campo. Nessa passagem, o processo de produção ensaístico deu espaço a afirmações científicas ditas ‘neutras’, das quais o pensamento político brasileiro é ainda refém.
“Vivemos a experiência da América”, afirmou Lessa, enumerando algumas das maiores fragilidades do conhecimento político produzido no Brasil hoje. O campo é monoglota – de língua inglesa – e se baseia em modelos simplistas usados essencialmente para medir e descrever o funcionamento de instituições políticas.
“O esforço de interpretação vem sendo substituído pelo esforço de mensuração”, destacou Lessa. “Adotou-se uma postura mais conservadora, apegada ao objeto e cada vez mais distante da vida social.”
Reverter esse quadro e conceber um mapa alternativo para o conhecimento político implicaria, a seu ver, um esforço gigantesco, e não só da ciência política. “Não é razoável supor que uma – apenas uma – disciplina tenha o monopólio da palavra no campo do conhecimento político”, defende Lessa, ao colocar o grande desafio para todas as ciências sociais – particulares, mas com problemas comuns.
Carla Almeida
Ciência Hoje On-line