Os primeiros habitantes da América do Norte

Os habitantes mais antigos da América do Norte chegaram ao continente mais de mil anos antes do que acreditavam os cientistas. Isso é o que comprova a identificação de DNA humano primitivo em fezes fossilizadas com mais de 14 mil anos, encontradas em cavernas do Oregon, nos Estados Unidos. Trata-se da primeira evidência forte da presença de povos anteriores à chamada cultura Clóvis, considerada por muitos a primeira civilização norte-americana.

A civilização Clóvis, assim chamada por causa dos artefatos encontrados perto da cidade de mesmo nome, no Novo México (Estados Unidos), teve início há cerca de 13 mil anos na América do Norte. Indícios de cultura pré-Clóvis nos Estados Unidos já haviam sido encontrados anteriormente, mas esses resultados eram controversos, devido à falta de datação direta de restos humanos ou artefatos. Há evidências mais antigas de ocupação humana na América do Sul, particularmente em Monte Verde, no Chile, com cerca de 14.500 anos.

Além de identificar DNA mitocondrial primitivo típico de americanos nativos, os pesquisadores encontraram proteínas e cabelo humano em coprólitos com cerca de 14.300 anos coletados em cavernas em Oregon, nos Estados Unidos (foto: Dennis LeRoy Jenkins).

“Temos uma evidência incontestável de ocupação da América do Norte anterior à cultura Clóvis”, diz à CH On-line um dos pesquisadores responsáveis pela descoberta, Tom Gilbert, da Universidade de Copenhague, na Dinamarca.

O estudo, realizado por uma equipe internacional de 13 cientistas, identificou DNA mitocondrial (mtDNA) humano primitivo em fezes fossilizadas (coprólitos) com cerca de 14.300 anos, datadas diretamente pelo método do carbono 14. Junto com os coprólitos, também foram coletados linhas manufaturadas de fibra, fibras de plantas, couro, artigos de vime, corda, pequenas estacas de madeira, fragmentos apontados semelhantes a projéteis e ossos de animais.

Populações asiáticas
Os coprólitos foram atribuídos inicialmente a humanos em função de seu tamanho, formato e cor. Em seguida, o mtDNA presente no material foi recuperado e analisado. Os resultados, publicados na Science desta semana, revelam a presença de assinaturas genéticas únicas de americanos nativos em seis dos 14 coprólitos examinados. “Encontramos dois tipos de DNA mitocondrial, chamados A2 e B2”, conta Gilbert. “Estudos anteriores mostraram que esses tipos derivam de populações da Sibéria e do nordeste da Ásia.”

Essas amostras positivas passaram por exames adicionais em laboratórios independentes para confirmar sua origem humana. A equipe ainda fez uma extensa avaliação para provar que não houve contaminações por DNA moderno dos pesquisadores que participaram da coleta e dos testes genéticos.

A análise genética dos coprólitos com mtDNA humano primitivo também revelou a presença de DNA similar ao de raposa vermelha, coiote, cachorro ou lobo, o que provocou controvérsias quanto à origem desse material. No entanto, devido às evidências não genéticas de que seriam fezes humanas e aos ossos de canídeos encontrados no sítio, os pesquisadores acreditam que os americanos primitivos teriam comido esses animais ou que eles teriam urinado sobre as fezes humanas. Essa explicação é reforçada pelo fato de terem sido encontradas também proteínas e cabelo humano nos coprólitos.

Migração pelo Pacífico
A descoberta, combinada com outros achados recentes, sustenta a hipótese de uma presença humana na América há 15 mil anos. Além disso, ela indica que os primeiros americanos, quando vieram da Ásia, teriam chegado à costa do Pacífico, em vez de terem seguido uma rota pelo interior, pois o corredor de gelo formado no norte do continente poderia não estar aberto naquela época.

Segundo Gilbert, há 14 mil anos, uma gigantesca placa de gelo atravessava o Canadá e bloqueava qualquer entrada que existisse pelo centro desse país. “A rota mais provável está abaixo da costa oeste, mas não podemos dizer se foi feita por barco ou simplesmente usando a estreita faixa de terra costeira.”

Sobre a hipótese de que teria havido uma primeira migração de povos vindos da África e Oceania para a América, sustentada pelos traços negróides do crânio de uma mulher (batizada de Luzia) encontrado no Brasil e datado de cerca de 12 mil anos, Gilbert argumenta que não há evidência genética de que os americanos nativos modernos tenham derivado diretamente dos africanos. “Nossos resultados de DNA são completamente diferentes das características genéticas africanas e se assemelham às de povos da Sibéria e do nordeste asiático”, reforça.

Os pesquisadores pretendem agora buscar mais amostras para refinar a análise sobre o grupo genético ao qual pertencem esses americanos nativos. “Poderemos então conseguir um melhor retrato de quem são esses povos primitivos”, estima Gilbert. 

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line
04/04/2008