Outro uso para a seringa

A morte da polêmica cantora inglesa Amy Winehouse, provavelmente por overdose, trouxe novamente à discussão o problema da dependência química. Muitos cientistas acreditam que cortar o “barato” das drogas é o primeiro passo para solucionar esse problema e por isso investem no desenvolvimento de vacinas contra o efeito dessas substâncias.

Desde a década de 1990, pesquisadores estrangeiros pesquisam esse tipo de medicamento que, depois de injetado por alguns meses, faz com que o organismo passe a encarar como uma ameaça as moléculas de determinadas drogas.

O neurocientista e psiquiatra Thomas Kosten, da Universidade Baylor, nos Estados Unidos, foi um dos primeiros a estudar esse tipo de tratamento, há 16 anos. Até hoje Kosten desenvolve e aperfeiçoa uma vacina contra os efeitos da cocaína.

A vacina de Kosten, e todas as outras que vieram depois, associam as moléculas de determinada droga a uma proteína que o nosso organismo reconhece como prejudicial, já que normalmente o nosso corpo não percebe a droga como um elemento estranho.

Sem o efeito alucinógeno, espera-se que o usuário perca a vontade de consumir a droga

Com essa associação induzida, o sistema imunológico começa a produzir anticorpos que atacam a droga na corrente sanguínea e a impedem de chegar até o cérebro, onde provocariam o estado de euforia. Sem esse efeito, espera-se que o usuário perca a vontade de consumir o alucinógeno.

“É muito comum que, em algum momento, os usuários de droga em processo de recuperação caiam na tentação, mas aqueles vacinados não vão ficar “altos” e vão perder o interesse na droga”, explica Kosten. 

O pesquisador associou uma molécula de cocaína a uma proteína desativada de cólera para dar o alerta ao sistema imunológico. Em uma primeira fase de estudo, foram feitos testes com camundongos que reagiram satisfatoriamente à vacina. Em 2007, o medicamento foi testado pela primeira vez com pessoas.

Ação da vacina anti-drogas
As vacinas fazem com que o organismo perceba a molécula de droga como uma ameaça. Assim, os anticorpos a atacam e a impedem de percorrer a corrente sanguínea até chegar ao cérebro. (ilustração: Sofia Moutinho)

O resultado com humanos não foi tão positivo. Cerca de 40% dos usuários de droga vacinados não desenvolveram uma quantidade suficiente de anticorpos para bloquear o efeito da cocaína no cérebro. Além disso, alguns dos pacientes passaram a consumir dez vezes mais cocaína na tentativa de alcançar novamente o “barato” que a droga oferecia. 

“As pessoas têm uma diversidade genética muito maior do que os camundongos, por isso a resposta diferente; mas ainda assim a vacina é um grande avanço”, explica Kosten, que conduz atualmente um segundo grupo de testes clínicos com previsão de término em 2014.

Múltipla inibição

Movida por propósitos semelhantes, a equipe do químico Kim Janda, do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia, publicou recentemente (21/6) no Journal of Medicinal Chemistry os resultados de um tratamento promissor contra a dependência de drogas. 

Os pesquisadores desenvolveram e testaram em ratos uma vacina que impede não só que a heroína chegue ao cérebro do usuário, mas que também inibe a ação de outras substâncias químicas decorrentes da droga, como a morfina. 

Dos sete animais vacinados, quatro perderam a vontade de usar a droga. Além disso, a vacina não apresentou efeitos colaterais e ainda diminuiu os efeitos da abstinência se comparada com os medicamentos tradicionais.

Nos meus 25 anos de estudo com medicamentos para tratar abuso de drogas, nunca vi algo tão eficiente

Até hoje não havia registros de vacina contra a heroína que tivesse dado certo, justamente porque a droga possui múltiplas substâncias psicoativas. “Nossa vacina produz anticorpos para uma droga que a todo momento muda de forma”, explica Janda. “Nos meus 25 anos de estudo com medicamentos para tratar abuso de drogas, nunca vi algo tão eficiente.” 

O pesquisador conta que pretende fazer testes clínicos com humanos o mais rápido possível e acredita que terá os mesmos resultados obtidos com os ratos. “Esperamos que a vacina se constitua como uma opção terapêutica para aqueles que tentam vencer a dependência de heroína.”

Em paralelo, outros centros de pesquisa estudam vacinas para outras drogas, como a nicotina. A Universidade Estadual de Michigan, também nos Estados Unidos, testa uma contra o tabagismo em um grupo de dependentes que fumam até dez cigarros por dia e estão motivados a parar.

Motivação pessoal

Kim Janda ressalta que esse tipo de vacina foi criado para tratar pessoas que já estão em processo de abstinência, ou seja, não se trata de uma vacina de prevenção nem de um medicamento mágico para o problema das drogas. 

“Se o paciente não tiver motivação, então nenhuma vacina vai funcionar, pois ele vai procurar outra droga para tomar que ainda tenha o mesmo efeito”, conjectura.

Se o paciente não tiver motivação, então nenhuma vacina vai funcionar 

Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, especialista em drogas da Universidade Federal de São Paulo, a motivação pessoal é um aspecto fundamental no controle da dependência de drogas. 

Laranjeira acredita na eficácia da internação involuntária como um primeiro passo no tratamento da dependência, mas não recomenda o mesmo para a vacina.

“Um tratamento biológico, como essas vacinas, não deve ser imposto”, diz. “É preciso sempre ter o contraponto do tratamento motivacional. Se a pessoa não estiver disposta a se tratar, não vai ser uma imposição biológica que vai superar o desejo dela pela droga.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line