Para além da Amazônia

Realizada em plena floresta amazônica, em Rio Branco, no Acre, a 66ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) não poderia se furtar de debater em profundidade temas associados à exploração e preservação dos vastos recursos naturais da região. Porém, o que se viu foram discussões que abordaram questões caras não só ao desenvolvimento sustentável da Amazônia, mas ao progresso da pesquisa e do ensino em todo o país. Mudanças climáticas, reforma universitária, democratização dos meios de comunicação, ética na pesquisa e muitos avanços científicos foram apresentados nas salas e auditórios que abrigaram o maior evento científico do país, encerrado no domingo (27/07).

De forma complementar ao debate sobre a falta de doutores no Norte do país, discutiu-se, por exemplo, a necessidade de se fortalecerem as universidades da região, com a criação de projetos conectados com o principal vetor de desenvolvimento regional: a floresta. Em conferência na última sexta-feira (25/07), o ministro da Educação, José Henrique Paim, prometeu empenho e investimento na área e utilizou a própria Universidade Federal do Acre para exemplificar o gargalo que existe na região: com quase meio século de existência, apenas em 2014 a instituição criou seu primeiro curso de doutorado.

O ministro também ressaltou a necessidade de um novo modelo universitário em geral, que leve em conta o papel dessas entidades no desenvolvimento do país e que mantenha relação mais próxima com o setor industrial. Nesse sentido, citou o recém-anunciado programa Plataformas do Conhecimento como alternativa para fomentar a cooperação entre o setor produtivo e as instituições de ciência e tecnologia. Paim ainda destacou a necessidade de internacionalizarmos nossas instituições: mesmo elogiando o programa Ciência sem Fronteiras, defendeu que é preciso ir mais longe nesse processo de cooperação entre universidades brasileiras e do exterior.

Pesquisadores defenderam que é preciso estimular a autonomia, a sustentabilidade financeira e a maior capacidade de operação da pesquisa básica aplicada nas universidades brasileiras

Duas mesas-redondas também falaram sobre a necessidade de reformas no ensino brasileiro. Uma delas relacionou a dificuldade de atrair e fixar doutores na Amazônia à falta de recursos, de condições de pesquisa e de infraestrutura da região. Sem escolas particulares e sistema de saúde de primeira linha, por exemplo, a capacidade de manter doutores diminui, argumentaram os palestrantes – e os resultados aparecem, por exemplo, na discrepância regional em indicadores de competência científica e de educação.

Na outra mesa, pesquisadores defenderam que é preciso estimular a autonomia, a sustentabilidade financeira e a maior capacidade de operação da pesquisa básica aplicada nas universidades brasileiras. Os debatedores problematizaram a emergência de grandes conglomerados privados de ensino superior, a necessidade de repensar os instrumentos de avaliação e supervisão dessas instituições, a perda de terreno do ensino presencial para o ensino a distância e a importância de levar a universidade a mais municípios do país, além da defenderem a adoção de currículos mais leves e interdisciplinares.

Foco na Amazônia

Como não poderia deixar de ser, a questão ambiental também foi destaque no evento. Em uma das palestras mais aguardadas, o climatologista Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, abordou o impacto das mudanças climáticas na gestão de risco na Amazônia. O francês radicado no Brasil há 40 anos chamou a atenção para a relação entre hidrelétricas e a emissão de gás metano, um dos principais causadores do efeito estufa, e defendeu que a implantação das hidrelétricas de Tucuruí e Belo Monte, no Pará, e de Santo Antônio, em Rondônia, foi fundamental para a ocorrência das secas e enchentes recentes na Amazônia – a cheia do rio Madeira, por exemplo, isolou o Acre por dez dias no início do ano.

Saiba mais sobre as cheias do rio Madeira e do rio Acre, que causaram grave crise de desabastecimento na região no início do ano

Um recurso pouco conhecido presente na região, o Sistema Aquífero Grande Amazônia, também foi lembrado nas palestras. Com mais de 162 quilômetros cúbicos de água escondida no subterrâneo, relativos a quatro bacias hidrográficas (Acre, Solimões, Amazonas e Marajó), o aquífero teria importância vital para a manutenção do sensível equilíbrio climático da floresta, em especial seu regime de chuvas – o que o torna fundamental para o clima de todo o país e até para atividades como a geração de energia elétrica.

O passado da região amazônica foi explorado pelo professor Jonas Pereira de Souza Filho, da Ufac. Ele apresentou registros fósseis de jacarés, tartarugas, jabutis, capivaras, aves gigantes, preguiças e outros animais, a maioria deles extintos, mas que já reinaram na região e são prova de que a grande floresta de hoje é apenas o estado atual da longa história evolutiva da própria Terra. Os achados indicam que a Amazônia já foi um enorme pantanal e uma savana – retorno ao passado que pode ajudar, inclusive, a pensar sobre o futuro da região.

Ética e democracia em pauta

Mas não só de Amazônia vive o maior encontro científico nacional. Um grande debate sobre ética na pesquisa com seres humanos marcou uma mesa realizada na última sexta-feira (25/07). Charles Schmidt, pediatra e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP), por exemplo, destacou a necessidade de se destravarem os nós burocráticos que barram as pesquisas clínicas e mostrou que eles fazem o país deixar de receber cerca de 150 milhões de dólares por ano em investimento estrangeiro.

Granjeiro: Embora o Brasil comece a adotar medidas para forçar a utilização de métodos alternativos ao uso de animais em experimentos científicos, a prática ainda é necessária para o desenvolvimento de certos medicamentos e tecnologias para a saúde

Já o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-colunista da CH On-line, ressaltou a vulnerabilidade das populações afetadas por pesquisas com seres humanos, relembrou o histórico negativo de violações aos direitos humanos nessa área e defendeu a adoção de regras próprias para as ciências humanas, diferentes daquelas para a pesquisa em saúde, já que as humanidades não interferem na “corporalidade” dos voluntários.

A ética na utilização de animais em pesquisas científicas também esteve na pauta do evento. O coordenador do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), José Mauro Granjeiro, explicou que, embora o Brasil comece a adotar medidas para forçar a utilização de métodos alternativos ao uso de animais em experimentos científicos, a prática ainda é necessária para o desenvolvimento de certos medicamentos e tecnologias para a saúde. Ele ponderou que os testes com animais para o desenvolvimento de cosméticos são modestos no país – embora sejam o principal alvo de críticas de ativistas – e que a Resolução Normativa nº 17 do Concea, a qual torna obrigatória a adoção de métodos alternativos, precisará de um prazo longo para ser posta em prática, já que requer a adaptação dos laboratórios.

Animal em laboratório
A ética na experimentação animal e na realização de pesquisas clínicas com humanos esteve entre os temas de grande importância para a ciência nacional debatidos na Reunião Anual da SBPC. (foto: Flickr/ Mycroyance – CC BY-NC 2.0)

Outro debate que recebeu destaque foi a criação de uma lei para regulamentar e democratizar os meios de comunicação no país. Os pesquisadores presentes avaliaram a história de concentração da mídia nacional e mostraram como as atuais leis de radiodifusão protegem os interesses de empresários. Nesse sentido, defenderam a implementação de uma nova legislação que vise beneficiar o conjunto da população e que dê voz à diversidade de opiniões e à pluralidade do país. Uma das questões levantadas foi a necessidade de se discutirem mecanismos que protejam os novos produtores de conteúdo, os ‘midiativistas’, que não estão ligados a qualquer tipo de reserva de mercado.

Muito mais ciência

Os cinco dias de programação intensa reservaram, ainda, muito espaço para a divulgação de resultados de pesquisa e discussões de todos os tipos. O pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz na Bahia Mitermayer Galvão dos Reis, por exemplo, anunciou a criação de um novo método de diagnóstico rápido de leptospirose, já aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Estudo mostrou uma mudança no perfil do tráfico de drogas nas fronteiras do Brasil: se antes elas eram corredores de entrada dos entorpecentes, hoje essas substâncias também ficam por lá

Outra mesa-redonda apontou a produção e exportação do mel de abelhas sem ferrão na Amazônia como alternativa econômica para as comunidades locais, enquanto um estudo mostrou uma mudança no perfil do tráfico de drogas nas fronteiras do Brasil: se antes elas eram corredores de entrada dos entorpecentes, hoje essas substâncias também ficam por lá.

Houve, ainda, a apresentação de uma teoria que indica a proliferação de fungos após a queda de um asteroide como causa da extinção dos dinossauros, além de um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que mostrou que o Acre é o principal emissor de fumaça da região transfronteiriça, rechaçando a tese de que a poluição que encobre o estado no auge das queimadas viria principalmente de cidades da Bolívia.

Depois do encerramento do evento no último domingo, resta à comunidade científica e à sociedade refletir sobre os assuntos debatidos, trabalhar e se preparar para a próxima edição, que em 2015 acontecerá na Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line