Para reabilitar Freud e Jung

A função dos sonhos sempre foi um mistério que atiça a curiosidade humana. No início do século 20, foram lançadas as bases para o estudo dos sonhos pelos pioneiros da psicanálise Sigmund Freud e Carl Jung. No entanto, a investigação científica atual do fenômeno onírico dá pouca importância a esse legado psicanalítico. Em artigo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria , o biólogo brasileiro Sidarta Ribeiro da Universidade de Duke (EUA) confirma que algumas de suas idéias tinham fundamento e merecem ser reavaliadas pelos estudiosos do sono.

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Estudos com ratos têm ajudado a neurociência a entender o
funcionamento do cérebro durante o sono (foto: S. Ribeiro)

A falta de métodos quantitativos e hipóteses testáveis desacreditou as teorias de Freud e Jung perante a ciência. “Eles traçaram um bom mapa para o começo dos estudos da mente, mas a ponte entre a biologia e a psicologia ainda não foi feita”, disse Ribeiro à CH On-line . A psicanálise retém muito mais sua atenção sobre símbolos presentes nos sonhos do que no seu substrato material, o sistema nervoso, o que causa descrença na comunidade científica.

No entanto, Ribeiro propõe uma revisão da imagem negativa da psicanálise para os cientistas ao apresentar avanços recentes da neurociência que convergiram para duas idéias psicanalíticas. A primeira delas é a evidência em laboratório de que os sonhos quase sempre apresentam objetos e experiências do dia anterior, assim como foi proposto por Freud. A outra idéia, defendida tanto por Freud quanto por Jung, é a seleção apenas dos episódios mais marcantes do dia para os sonhos, que, portanto, teriam um papel importante na sedimentação da memória e no processo de aprendizado.

Um dos mecanismos cerebrais responsáveis pela construção da memória é a chamada reverberação. Observada diretamente em ratos como função da atividade neuronal, a reverberação é um processo de reativação pós-estimulo que também pode ser indiretamente detectado em humanos, por meio de medidas do fluxo sangüíneo no cérebro por ressonância magnética funcional. “É como se o cérebro repassasse inúmeras vezes a fita das partes mais marcantes do dia”, explica Ribeiro. Ela acontece o tempo todo, mas durante o sono, principalmente na fase de ondas lentas, esse processo é amplificado, pois não há interferência sensorial.

A indução de mudança estrutural dos neurônios é outro mecanismo indispensável para a consolidação da memória, e acontece com maior intensidade durante a fase do sono chamada REM (sigla em inglês para rapid-eye-movement ). O sono REM se segue à fase de ondas lentas e é nessa fase que ocorrem os sonhos. É também no sono REM que são ativados os genes imediatos, assim chamados por serem os primeiros a serem ativados para a criação de uma memória de longo prazo.

Os cientistas acreditam que o gene zif-268 seria o principal gene imediato para a formação de memórias, pois camundongos nos quais esse gene é seletivamente desativado são incapazes de aprendizado de longo prazo, embora mantenham o aprendizado de curto prazo. Cauteloso, Ribeiro não acredita ser esse o principal gene imediato: “existem muitos ainda desconhecidos”, alega. O biólogo pretende continuar seus estudos sobre o funcionamento do cérebro durante o sono[1].

 

[1] Sidarta Ribeiro pretende continuar seus estudos sobre a relação do sono com a já conhecida migração da memória do hipocampo, que apenas armazena as memórias de curto prazo, para o córtex cerebral, com mais espaço, onde elas se tornam memórias de longo prazo. Além disso, o biólogo também pretende entender porque a reverberação durante o sono REM é mais variável. Supostamente, durante o sono de ondas lentas, a pessoa aprenderia por repetição. “Já no sono REM, a reverberação ’remexida’ produziria idéias novas, o que explicaria porque acordamos com novas idéias na cabeça depois de uma longa noite de sono”, explica. Experimentos estão a caminho para testar essa hipótese. 

 Liza Albuquerque
Ciência Hoje On-line
08/04/04