Pela conquista do espaço

Já estamos na segunda década do século 21 e há tempos as mulheres têm conquistado seu espaço. Mas ainda há gente que parece viver em outra época – como o repórter que recebeu uma bela resposta da astronauta russa Yelena Serova ao perguntar sobre seu penteado. Para essas pessoas – e para milhões de meninas que se afastam da ciência por considerarem ‘coisa de garoto’ –, a engenheira Nagin Cox, da agência espacial norte-americana (Nasa), é um exemplo e tanto: ela é uma das responsáveis pelo controle da sonda Curiosity em Marte e também viaja pelo mundo proferindo palestras sobre o programa espacial e a participação feminina na ciência.

Um desses eventos, realizados em parceria com o Departamento de Estado dos Estados Unidos, ocorreu no Brasil no final de setembro: Cox esteve no encontro ‘Mulheres na Ciência’, que reuniu pesquisadoras brasileiras de diversos campos e estudantes no Planetário do Rio de Janeiro. Em entrevista especial à Ciência Hoje On-line, ela falou sobre a jornada da Curiosity até seu recém-alcançado destino final em Marte, o monte Sharp, contou um pouco sobre o trabalho em ‘solo marciano’ e discutiu futuras missões rumo ao planeta vermelho.

Indiana naturalizada norte-americana, a engenheira abordou ainda a necessidade de superar as barreiras que afastam meninas e mulheres da ciência. Cox, que trabalha no Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) da Nasa e também participou da missão Opportunity, visitou ainda as cidades de Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre.

Como é trabalhar todos os dias ‘em Marte’?
É maravilhoso, é o que eu queria desde os meus 14 anos. Um dos meus maiores prazeres é chegar ao JPL e ver em primeira mão imagens que a humanidade nunca viu antes.

Sonda Curiosity
A pesquisadora Nagin Cox é uma das responsáveis por ‘dirigir’ a sonda Curiosity (na foto) em Marte. (foto: NASA/ JPL-Caltech/ MSSS)

Qual é sua função específica na missão Curiosity?
Sou membro de um time formado por pesquisadores locais e de outras partes do mundo responsável por enviar, todos os dias, os comandos para a sonda. Nosso trabalho é analisar os dados que a Curiosity traz e decidir o que fazer no dia seguinte. Isso é complicado, porque nosso robô não vai durar para sempre, então cada dia importa. É como ir a uma cidade desconhecida com um grande grupo de pessoas: cada um quer fazer algo diferente, pois há muita coisa interessante para fazer.

E como vocês se adaptam ao dia marciano?

O dia em Marte dura cerca de 40 minutos a mais do que o nosso e, nos primeiros três meses, trabalhamos no horário marciano

O dia em Marte dura cerca de 40 minutos a mais do que o nosso e, nos primeiros três meses, trabalhamos no horário marciano. Então, a cada dia chegávamos 40 minutos mais tarde do que no anterior; demos a volta completa no horário da Terra. Havia pesquisadores de todo o mundo reunidos para aprender a operar a sonda como uma equipe. Mas, depois de um tempo, se torna difícil para o corpo e para as famílias… Afinal, nossos filhos continuam indo para a escola no horário da Terra e não há babás que atendam no fuso marciano. Então, passamos para um horário terráqueo alterado, que nos permite estar em casa todo dia na hora do jantar.

A Curiosity acaba de chegar ao monte Sharp, seu destino final. E agora?
Essa é uma conquista muito excitante! Agora podemos começar a estudar melhor o ambiente marciano. Durante os últimos dois anos, juntamos evidências que mostram que Marte já teve água um dia. Agora entramos mais ainda no ‘modo ciência’: escavando, coletando amostras e analisando-as para descobrir se os ingredientes básicos necessários à vida também existiram por lá. O monte Sharp é ideal para isso, pois cada camada de sua encosta mostra um tipo de rocha, de um período diferente. A ideia para os próximos anos é explorar a montanha. Até aqui, planejávamos o que fazer no próximo mês, mas agora direcionamos as atividades a partir das descobertas de cada dia.

No caminho até lá, a sonda enfrentou problemas inesperados. O que aconteceu?
Sabíamos que o deslocamento em Marte provocaria desgaste nas rodas da Curiosity, mas observamos danos maiores do que o previsto. Explicando de forma simplificada: a área pela qual nos deslocávamos tinha rochas especialmente ‘afiadas’, de um tipo de terreno que nunca havíamos encontrado. Isso faz parte da exploração. Descobrimos que, pelas propriedades da suspensão da Curiosity, o estrago era menor se dirigíssemos a sonda ‘de marcha a ré’. Também alteramos a rota para evitar os terrenos mais perigosos – inclusive áreas muito arenosas. Tivemos a ajuda de satélites como o Mars Reconnaissance Orbiter, cuja câmera de alta precisão permitiu estudar com detalhes o terreno para escolher a melhor rota, algo inédito na história da exploração de Marte.

Qual foi o momento mais importante da missão?
Com certeza o pouso mobilizou todo mundo, havia muita tensão no ar. O procedimento usado era inédito e complicado, com uma série de comandos automáticos e um período de sete minutos de total incomunicabilidade com a Terra. Foi tudo transmitido ao vivo e combinamos de ficar sentados, com ar profissional, mas, quando as câmeras da Curiosity enviaram sinal da superfície de Marte, parecia que víamos o planeta por nossos próprios olhos. Ficamos descontrolados, todos gritavam e choravam. Cerca de 200 dias depois, tivemos um problema na memória da Curiosity e parecia que a situação ficaria muito ruim, mas acabou dando tudo certo. Esses momentos de ‘engenharia’ costumam ser os mais tensos, pois a ciência não pode funcionar se o carro não funciona.

Veja como foi a emocionante transmissão do pouso da Curiosity em Marte

Nos últimos meses, duas novas sondas chegaram a Marte, a Mars Atmosphere and Volatile Evolution (Maven), da Nasa, e a Mars Orbiter Mission (MOM), da Índia. Como isso afeta o processo de exploração do planeta?
Pense o seguinte: se Marte já teve água, pra onde ela foi? Pode ter ido para dentro, para o subsolo, ou, mais provavelmente, para fora, para a atmosfera, e se dissipado. Estudar a atmosfera é justamente a missão da Maven. E isso é muito relevante para a própria Terra: considerando todos os modelos que temos criado para estudar as mudanças climáticas, quanto mais aprendermos sobre um ambiente que passou por mudanças tão drásticas, melhor.

Já a missão indiana é um marco, seu principal objetivo era aprender a levar uma sonda até lá e operá-la. De qualquer forma, é um novo conjunto de instrumentos sobrevoando o planeta e nos trazendo novas informações. Mas a melhor notícia talvez seja ter mais um país participando dessa exploração. Isso muda a perspectiva do país, mostra ao povo que ele está num caminho moderno, o que se dissemina para outros aspectos da sociedade – veja quantos jovens estudantes indianos assistiram à chegada da MOM. Do espaço não há fronteiras, cores, religiões, homens ou mulheres, só humanos habitando um mesmo mundo. Não se trata de um país indo a Marte, mas de toda a humanidade.

Sonda MOM
A sonda indiana MOM foi o primeiro equipamento de um país asiático a alcançar com sucesso o planeta vermelho. Para Cox, a conquista é uma ótima notícia para a exploração espacial como um todo, já que reforça o caráter internacional e colaborativo dessa área. (imagem: Wikimedia Commons/ Nesnad – CC BY-SA 3.0)

Há uma nova sonda programada para ir a Marte em 2020. O que o projeto pode aprender com a experiência da Curiosity?
O Mars 2020 vai dar continuidade ao estudo do ambiente marciano e vai usar o mesmo sistema de pouso da Curiosity, por exemplo. Às vezes, há uma tendência de abandonar os projetos, com a alegação de que outro pode funcionar melhor, mas esse sistema nos deu muito trabalho, foi fruto de muito estudo. Na primeira vez em que o apresentamos, disseram que estávamos loucos. Hoje pode não parecer, mas ir a Marte não é simples; até 2004 duas a cada três missões falhavam. Por décadas, desenvolvemos nossa capacidade de pouso até que, com a Curiosity, foi possível escolher bem onde queríamos pousar – e a escolha da cratera Galé também foi fruto de meses de debate.

Essa missão será importante para o objetivo de levar humanos para Marte?
Sem dúvida. Com a Curiosity, já analisamos a quantidade de radiação tanto na viagem até o planeta quanto na superfície, algo fundamental para a produção de trajes espaciais adequados. A Marte 2020 fará as primeiras experiências para gerar recursos necessários à vida no próprio planeta – por exemplo, produzir oxigênio a partir do dióxido de carbono da atmosfera.

Outro ponto cientificamente complicado é o envio de equipamentos cada vez maiores e mais complexos para Marte. Então temos como alternativa trazer amostras para estudo na Terra – o que também é muito complicado [risos]. Nesse sentido, a 2020 começará a desenvolver a habilidade de colher amostras de interesse e estocá-las, para que uma próxima missão possa recolher o material. É uma tarefa desafiadora. 

Você cresceu em uma família muçulmana. Isso influenciou sua carreira?

Na minha família, a tradição é que meninos sejam iniciados em ciências e meninas em áreas mais ‘tradicionais’

Desde pequena percebi que muitas vezes meninos e meninas são tratados de forma diferente. Na minha família, a tradição é que meninos sejam iniciados em ciências e meninas em áreas mais ‘tradicionais’. Logo vi que não queria isso, mas não havia dinheiro para a faculdade; por isso, entrei para a aeronáutica – na época a entrada de mulheres tinha acabado de ser liberada. Mas essa diferenciação não é exclusiva do contexto em que vivi, está em toda parte, por muitos motivos. A ideia de tratar pessoas de forma diferenciada é errada, injusta. Quando segui o caminho da exploração espacial, isso continuou me inquietando, então passei a me dedicar a isso em meu tempo livre.

Você costuma viajar por todo o mundo falando sobre isso. Como é essa experiência?
Meu foco principal são os veículos robóticos, mas faço uma ou duas dessas viagens por ano, é uma experiência incrível. Quando falamos da pesquisa espacial, falamos da importância de homens e mulheres envolvidos nisso, mostramos que todos nós precisamos participar da construção do futuro do nosso planeta. Sinto-me privilegiada, é uma ótima oportunidade para falar de ciência e dos direitos das mulheres, das meninas – em alguns lugares isso é muito sério, elas sequer recebem educação formal. A situação precária de muitas mulheres em todo o mundo me deixa louca. Também sou voluntária de um programa de autodefesa feminina, uma forma de entrar em ação, e apoio organizações como o Humans Rigths Watch, que podem fazer mais no contexto global.

Cientista
Cox viaja regularmente para vários países para atuar como uma espécie de embaixadora da luta pelos direitos das mulheres e grande incentivadora da participação feminina na ciência. (foto: Flickr/ julochka – CC BY-NC 2.0)

Como foi fazer parte da força aérea e depois dedicar-se à engenharia, meios ainda dominados por homens?
Entrar para a força aérea foi a única forma de custear meus estudos, só depois percebi que gostava de lá. Enfrentei os mesmos problemas de qualquer mulher, era a única da turma de graduação, havia poucas mulheres de forma geral no curso. Fiquei muito feliz ao voltar, alguns anos atrás, e ver, apenas no lobby, mais mulheres do que por todo o tempo em que estive lá. Progressos estão sendo feitos. Mas não se trata de uma marcha inexorável, a igualdade é algo pelo qual precisamos lutar, é uma decisão consciente de uma sociedade racional.

Você acha que a exploração espacial, por sua popularidade, é um campo propício a atrair mais as meninas para a ciência?
Acho que sim. No caso da Curiosity, foi muito legal que o nome da sonda tenha sido escolhido num concurso on-line e quem ganhou foi uma menina da 6ª série, que passou a integrar nossa equipe, inclusive estava lá no dia do pouso em Marte. Muitas vezes a criança pensa no que fazer no futuro a partir das matérias que gosta. Isso é importante, mas é fundamental pensar no que você gostaria de fazer daqui a 30 anos, a que questões gostaria de se dedicar. Para chegar lá, no entanto, é preciso desse ou daquele conhecimento, são ferramentas. Não é raro um adulto se aproximar de mim após minhas palestras e dizer: “Nossa! Queria ter ouvido isso antes.”

Quais são seus objetivos aqui no Brasil?

Existem questões culturais que afastam as meninas da ciência e acho que elas podem se motivar ao ver as mulheres que trabalham na Nasa

Quero chamar a atenção para o que é possível quando você junta homens e mulheres sem barreiras. A América do Sul não é diferente de outras partes do mundo. Nos Estados Unidos, também temos problemas com violência doméstica e crimes contra as mulheres. Existem questões culturais que afastam as meninas da ciência e acho que elas podem se motivar ao ver as mulheres que trabalham na Nasa. A ideia não é incentivar todas a trabalhar lá, mas a atuar em seu próprio país, nos desafios que existem aqui.

Que mensagem você deixaria para as meninas?
Primeiro que, quando for escolher o rumo da sua vida, escolha algo que te apaixone. Considere que um diploma em engenharia dá flexibilidade para decidir mais tarde que problema você gostaria de resolver – e, como vivemos num mundo tecnológico, ser letrada em ciência é sempre importante. Além disso, lembre que não há melhor carreira do que ser pai e mãe, mas há outras coisas além disso, e elas não se excluem. Na Nasa, por exemplo, programamos ter filhos em função das missões: os meses que antecedem um lançamento e que se seguem a um pouso são de muito trabalho, por isso, aproveitamos os intervalos. Isso faz parte de ser mulher, faz parte de ser cientista – e nós amamos nosso trabalho. Isso também vale para os homens, é claro. Mantenha sempre por perto quem entende seus sonhos e te apoia e não deixe ninguém dizer que algo não é pra você.