Perigo no ar

Duas importantes vias de tráfego no Rio de Janeiro apresentam níveis de poluição do ar até seis vezes acima do considerado tolerável pela Organização Mundial da Saúde (OMS): a avenida Brasil e o túnel André Rebouças. Em ambos os locais, frequentados por milhares de pessoas todos os dias, pesquisadores detectaram presença significativa de poluentes que causam doenças respiratórias e mutações genéticas que podem levar ao surgimento de câncer. A situação é mais crítica no Rebouças e já afeta a saúde de trabalhadores do túnel.

A pesquisa, apresentada na semana passada na 29ª Reunião Anual da Federação de Sociedades de Biologia Experimental, em Caxambu (MG), foi conduzida por cerca de quatro anos durante o mestrado da bioquímica Claudia Rainho na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Com um aparelho que filtra as partículas poluentes em suspensão na atmosfera colocado nos dois locais e no campus da universidade – para fins de comparação –, a pesquisadora e sua equipe coletaram o chamado material particulado fino, partículas de poeira, metais e outros materiais com menos de 2,5 micrômetros de diâmetro (do tamanho de uma bactéria).

Material particulado fino
O material particulado fino coletado na atmosfera é tão pequeno que consegue passar pelos alvéolos pulmonares e entrar na corrente sanguínea, provocando problemas de saúde. (imagem: Environmental Protection Agency/ USA)

Por serem tão pequenos, quando inalados, esses fragmentos conseguem passar pelos alvéolos pulmonares e atingir a corrente sanguínea, o que pode provocar desde infecções locais, alergias respiratórias e asma, até mutações genéticas, dependendo da composição da ‘poeira’.

Poluição dos veículos

A maior parte desse material é proveniente da queima de combustível dos veículos, o que explica a grande presença de poluentes nas duas localidades. Segundo o último Relatório Anual de Qualidade do Ar do Estado do Rio de Janeiro, feito pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente (Inea), os automóveis são responsáveis por 77% do total de poluentes lançados na atmosfera na região metropolitana do Rio de Janeiro.

De acordo com a OMS, os níveis de material particulado não devem ultrapassar 25 microgramas por metro cúbico (µg/m3). As medições mais recentes realizadas pelo estudo da Uerj revelaram quantidades até seis vezes acima desse valor. Em abril de 2011, a concentração chegou a 141 µg/m3 no túnel Rebouças. Durante os quatro anos analisados, tanto a avenida Brasil quanto o Rebouças apresentaram níveis acima do tolerado em todos os meses.

Durante os quatro anos analisados, tanto a avenida Brasil quanto o túnel Rebouças apresentaram níveis acima do tolerado em todos os meses

“O equipamento que usamos para coleta demorava normalmente cerca de 24 horas para ficar saturado, mas, no Rebouças, tínhamos que trocar o filtro de seis em seis horas, porque ele ficava totalmente coberto nesse intervalo e o aparelho travava”, conta a orientadora da pesquisa, a toxicologista Claudia Aiub, hoje pesquisadora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ela explica que a maior poluição no túnel se deve ao fato de se tratar de um local fechado e com baixa circulação de ar.

O túnel Rebouças é a principal ligação entre os bairros do Rio Comprido e da Lagoa. É o maior túnel urbano do país, com 2.800 metros de comprimento e duas galerias paralelas, num total de 6.600 metros de escavação em rocha. Dentro dele, a concentração de material particulado é comparável a de países altamente poluídos, como a China.

Aiub diz que o problema seria resolvido com medidas simples, como a instalação de ventiladores mais potentes no interior do túnel e o aperfeiçoamento da sua estrutura visando à melhor circulação de ar.

Desde a sua inauguração, em 1969, o túnel Rebouças não passou por grandes reformas. Um projeto de revitalização da prefeitura da cidade orçado em 63,3 milhões de reais teve início este ano e prevê combate às infiltrações, pintura, instalação de lâmpadas de LED, desobstrução de canaletas e substituição do pavimento da galeria Rio Comprido – Cosme Velho. Dentre as melhorias divulgadas pela prefeitura não está a instalação de ventiladores mais potentes ou novos mecanismos de circulação de ar.

Substâncias tóxicas

Além da quantidade, os pesquisadores analisaram a constituição do material particulado coletado em busca de substâncias tóxicas. Encontraram altas concentrações de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPA), principalmente no inverno, e de nitro-hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (NHPA), especialmente no verão. Isso porque o NHPA é gerado quando o HPA é exposto à radiação ultravioleta da luz solar.

Esses compostos têm a capacidade de alterar o DNA humano, quebrando-o e produzindo mutações que podem levar à morte celular e ao desenvolvimento de doenças. “Quando ocorrem essas quebras no DNA, a célula tem dois caminhos: ou ela ‘conserta’ isso se matando ou continua viva e perpetua o erro”, explica Aiub. “Quando ela se mata, ela explode e gera um efeito inflamatório rápido e grave que, no pulmão, leva à diminuição da sua complacência e impacta o seu funcionamento. Agora, se ela não corrige o erro, a mutação se perpetua e leva à formação de tumores e cânceres em longo prazo.”

Avenida Brasil
Motoristas e pedestres que passam pela avenida Brasil, no Rio de Janeiro, a maior avenida do país, estão expostos a poluentes atmosféricos que provocam doenças respiratórias e câncer. (foto: Wikimedia Commons/ Missionary – domínio público)

Por força de recomendações internacionais, os níveis de HPA no ar são periodicamente medidos nas cidades pelos órgãos ambientais responsáveis – no Rio, pelo Inea. Já os de NHPA não são calculados, o que pode levar a interpretações errôneas dos boletins de qualidade de ar. “No verão, observamos a redução dos HPAs, o que pode parecer bom à primeira vista; mas é um falso positivo, porque, na verdade, eles são transformados em NHPAs, que são muito mais mutagênicos e nocivos”, observa a pesquisadora.

Vítimas na escuridão

O estudo avaliou ainda o impacto da inalação desses compostos na saúde dos trabalhadores do túnel Rebouças, que frequentemente passam longas horas expostos aos poluentes.

“As pessoas podem pensar que não há tanto perigo porque passar no túnel é rapidinho, mas, quando acontece um acidente, tudo fica parado e os principais afetados são quem sofreu o acidente, que vai ter que aguardar socorro, e quem trabalha no túnel e tem que prestar assistência, respirando aquele ar por três horas ou mais”, comenta Aiub.

Os pesquisadores aplicaram aos trabalhadores do túnel um questionário para saber o estilo de vida de cada um. A partir daí, foram selecionados para mais avaliações aqueles que não fumavam. O grupo, formado por homens de 25 a 64 anos, foi submetido a coletas de sangue, urina e células da mucosa da boca após estarem por duas horas no túnel. Os materiais biológicos recolhidos foram analisados em laboratório em busca de traços de problemas de saúde relacionados à poluição do ar.

Os trabalhadores exibem 10 vezes mais mutações genéticas do que as pessoas que não estão expostas a esse tipo de ambiente com frequência e a maioria apresenta problemas respiratórios

A maioria dos funcionários apresenta problemas respiratórios como rinite alérgica. Porém, o problema mais grave foi observado em um exame que analisou o DNA de suas células. Os cientistas verificaram que os trabalhadores exibem 10 vezes mais mutações genéticas do que as pessoas que não estão expostas a esse tipo de ambiente com frequência.

“Os efeitos sistêmicos dessas mutações, na forma de um câncer de pulmão, por exemplo, só vão aparecer daqui a 10 ou 20 anos, provavelmente quando eles já estiverem aposentados”, pontua a toxicologista, que informa que os funcionários já estão recolhendo os dados da pesquisa para entrar com uma ação trabalhista de reparação de danos na justiça.

Aiub lembra que outra classe bastante afetada pela exposição à poluição do túnel deve ser a dos motoristas de ônibus. Hoje há pelo menos cinco linhas que trafegam pela avenida Brasil e pelo túnel Rebouças. A pesquisadora chegou a pensar em avaliar também a saúde desses profissionais, mas encontrou resistência no sindicato da categoria.

Sofia Moutinho (*)
Ciência Hoje On-line

* A jornalista viajou para Caxambu a convite da Fesbe.