Povo resistente

 

A exposição crônica a baixas doses de mercúrio, um metal pesado conhecido por seus efeitos neurotóxicos, parece não afetar a população ribeirinha da bacia dos rios Madeira, em Rondônia, e Tapajós, no Amazonas. Um trabalho realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Universidade Federal de Rondônia (Unir) sugere que essa resistência, assim como a contaminação pelo metal, seria originária da própria dieta da população.

A colaboração entre as duas universidades já dura 20 anos, ao longo dos quais os pesquisadores analisaram a dinâmica ambiental do mercúrio usado nos garimpos de ouro da região. “A intoxicação nos garimpeiros ocorre com a versão inorgânica do metal, que não costuma causar danos à saúde. Já nos ribeirinhos e nos peixes, ocorre com a orgânica, que entra nas células”, explica o biólogo João Paulo Torres, pesquisador do Laboratório de Radioisótopos Eduardo Penna Franca da UFRJ.

Segundo Torres, que apresentou o trabalho na 22ª Reunião da Federação das Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe), a contaminação humana deve-se à dieta rica em peixes – naquela região, cada pessoa consome em média meio quilo desses animais por dia, principalmente os carnívoros. Nestas espécies, o índice de contaminação é igual ao limite brasileiro aceitável de 1 micrograma (μg) de mercúrio por grama de peso. “Contudo, esse patamar é o dobro do internacional. Ele foi aumentado pelo governo para ‘diluir’ o problema da contaminação”, revela o biólogo.

Segundo pesquisa, o mau desempenho das crianças ribeirinhas em testes cognitivos não se deve aos efeitos da contaminação por mercúrio a que estão submetidas, mas sim ao fato de essas avaliações não serem adaptadas à realidade da Amazônia. (Crédito: Vitor Duarte)

Nos ribeirinhos, as taxas de contaminação estão próximas do limite de 50 μg/g, definido pela Organização Mundial de Saúde como representativo de uma intoxicação aguda. Nesses níveis, a população deveria apresentar problemas sérios de cognição, mas não é isso que os pesquisadores observam.

Segundo eles, o mau desempenho das crianças locais em testes cognitivos se deve ao fato de essas avaliações não serem adaptadas à realidade da Amazônia. “Pede-se a alguém que nunca teve acesso à eletricidade que diferencie uma vela de uma lâmpada, por exemplo”, comenta Torres.

O biólogo explica que a resistência aos efeitos lesivos do mercúrio pode ser reflexo do selênio também presente na dieta (em peixes, castanhas etc). Esse elemento se associaria com o metal, formando um cristal biomineral que se acumularia e, com o passar do tempo, seria excretado do corpo. “Nosso grupo irá agora procurar sinais dessas associações no fígado”, conta.

Torres ressalta que o grande temor dos pesquisadores é que a contaminação seja usada como desculpa para alterar a dieta da população, fazendo com que doenças típicas da cidade, como a obesidade, a diabetes e a hipertensão, passem a afetá-la. “Isso aconteceu com os esquimós, que tiveram sua alimentação alterada por causa da contaminação por mercúrio e hoje sofrem de todos esses males”, conclui o biólogo.

Fred Furtado
Especial para Ciência Hoje On-line
30/08/2007

* O repórter viajou para Águas de Lindóia a convite da Fesbe