A cada melhoria nas técnicas para observar fósseis, é possível redescobrir o passado com maior riqueza de detalhes: que espécies viveram há milhões de anos, como era o ambiente que as cercava… Uma pesquisa desenvolvida pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pela Universidade Federal do Cariri usou um novo método de microscopia eletrônica para analisar fósseis brasileiros. Os resultados revelaram informações inéditas sobre o paleoambiente da região do Araripe, além de indicar características morfológicas de um camarão pré-histórico.
Dois anos atrás, microscópios eletrônicos de varredura foram instalados no campus da UFC. Capazes de gerar imagens com resolução 500 vezes maior que os microscópios ópticos, esses aparelhos são usados para analisar estruturas pequeníssimas, da ordem dos nanômetros, com a ajuda de um pequeno e preciso feixe de elétrons que incide sobre os objetos a observar. Com isso, é possível obter imagens, por exemplo, de grãos de pólen, células, bactérias – em resumo, desvendar o mundo do muito pequeno.
Com a chegada dos novos microscópios, o químico Amauri J. Paula, que ministrava oficinas para o manuseio dos aparelhos, foi solicitado para usar a técnica na análise de fósseis da região da Bacia Sedimentar do Araripe. O trabalho era um desafio: por um lado, o estado de conservação do material pedia uma análise cuidadosa com imagens de alta resolução; por outro, o microscópio, utilizado para ampliar imagens de áreas pequenas, não comportaria o tamanho dos fósseis. A solução foi captar as imagens aos poucos, cobrindo pedaços pequenos das rochas a cada vez, e depois montar, como num quebra-cabeças de milhares de peças. Como resultado, os cientistas obtiveram mosaicos de imagens com altíssima resolução. O trabalho foi publicado na revista Analytical Chemistry.
O mar que virou sertão
O primeiro fóssil analisado por Paula foi um camarão com 2,5 centímetros de comprimento. As imagens de alta resolução geradas pela microscopia eletrônica de varredura permitiram analisar em detalhes estruturas pequeníssimas, como antenas, pleiópodos e pereiópodos (como são chamadas as estruturas semelhantes a patas na parte inferior do corpo do animal).
Além de revelar detalhes da anatomia do animal fossilizado, a microscopia eletrônica de varredura trouxe novas informações sobre o ambiente em que ele viveu: a técnica é capaz de avaliar as condições físicas e geográficas da localização do fóssil a partir da definição dos elementos químicos presentes na composição da rocha.
O conjunto dessas informações, que os cientistas chamam de mapa elementar, é produzido a partir da interação entre o feixe de elétrons emitido pelo microscópio e a amostra. O choque dos elétrons carrega a área atingida de energia, e esta emite raios x em resposta ao impacto. Como a emissão varia de acordo com os elementos químicos presentes na amostra, analisando-a, podemos descobrir a composição da rocha.
A presença de sulfeto de zinco no fóssil surpreendeu os cientistas. Essa substância é rara em processos de fossilização – geralmente, os animais se fossilizam, ou seja, têm suas partes do corpo substituídas por minerais, por meio da formação de fosfato de cálcio, sulfeto de ferro, sílica e outros. O sulfeto de zinco é formado apenas sob condições muito especiais, como fendas hidrotermais milhares de metros abaixo do nível do mar, e, embora já tenha sido detectado em fósseis encontrados na Noruega e nas ilhas Galápagos, por exemplo, nunca havia sido identificado na região.
Tal descoberta levanta duas hipóteses. A primeira é de que o mar que existiu na região e virou lago há mais de 120 milhões de anos teria, além de ácidos inorgânicos a base de enxofre (como ácido sulfídrico), alto teor de zinco na sua composição. Outra possibilidade é de que o camarão fossilizado tenha ingerido e acumulado zinco ao longo da vida, sob condições ainda não completamente compreendidas. Paula considera que a descoberta encoraja mais estudos sobre os processos geológicos e geofísicos do Araripe, utilizando técnicas modernas de microscopia e espectroscopia.
Próximos passos
A pesquisa continua em andamento com outros fósseis. A metodologia é minuciosa e trabalhosa, o que acaba ditando o ritmo de trabalho. Na análise do camarão, foram necessários cerca de 3.600 registros para montar o mosaico de imagens. Segundo Paula, a técnica se mostrou fantástica por ampliar as fronteiras de análise, mas ainda não é executável em fósseis maiores que 10 centímetros. Outra dificuldade está no trabalho com imagens e na necessidade de adotar equipamentos e computadores específicos. Nada, porém, que diminua a empolgação do pesquisador com a empreitada. “Agora que foi mostrada a potencialidade da técnica, queremos explorar mais”, afirma.
Segundo o paleontólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro Alexander Kellner, essas técnicas devem se tornar progressivamente mais acessíveis, ainda que custosas, e proporcionar novas perspectivas para o trabalho de campo no país. “Acabou aquela noção do pesquisador que fica no escritório e tira poeira de fóssil”, garante Kellner, que também é colunista da CH On-line.
O método tradicional de análise de fósseis consiste na identificação do tipo de rocha do fóssil e no preparo de lâminas para tentar encontrar diferentes minerais que possam indicar hipóteses sobre o ambiente e o tipo de fossilização. Para Kellner, o uso do próprio fóssil para a obtenção desse tipo de informação, como feito na pesquisa da UFC, é um avanço importante: “Agora, o método precisa ser repetido com outros tipos de fósseis para verificar se há repetição ou variação ao longo da sequência”, pondera o paleontólogo.
Extrair e analisar a maior quantidade possível de fósseis é justamente um dos próximos passos do projeto, que prevê a instalação de microscópios e computadores na região do Araripe e medidas para impedir o extravio das rochas, prática relativamente comum devido à dificuldade de controle e abundância de fósseis na região.
Iara Pinheiro
Instituto Ciência Hoje / RJ