O antirracismo como sentido da vida

A historiadora Karine Teixeira Damasceno mostra, em sua tese de doutorado, a trajetória de mulheres negras escravizadas, libertas e livres que foram protagonistas na luta por sua liberdade, de seus familiares e de outras pessoas de suas comunidades. Movendo ações de liberdade na Justiça ou negociando cartas de alforria, elas foram fundamentais no processo que fez ruir o sistema escravista no Brasil no século 19. Mais de 130 anos depois, em meio à pandemia de covid-19, que atinge mais duramente a população negra, e dos protestos contra o assassinato de George Floyd, que tomaram ruas e redes sociais nos Estados Unidos e no mundo, Karine, que é filiada ao Movimento Negro Unificado (MNU) e integrante da Rede de Mulheres Negras da Bahia, compara os dois momentos: “A luta contra o racismo nos tempos atuais é o sentido da nossa vida assim como era, para os que viveram a escravidão, a luta pela liberdade”. Nesta entrevista, a pesquisadora, que é doutora pela Universidade Federal da Bahia e faz pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, compara os movimentos antirracistas de Brasil e EUA, fala do racismo acadêmico, avalia a importância das ações afirmativas, destaca a importância de estudar a África e reafirma o protagonismo das mulheres. “Nós, mulheres negras, saímos dos bastidores e, mais do que nunca, estamos na cena pública, apresentando para a sociedade o nosso ponto de vista, tentando contribuir para nossa própria libertação das opressões, do sexismo, do racismo, e propondo mudanças nos mais diversos setores”.

CIÊNCIA HOJE: Como você avalia os atuais protestos antirracistas? No que diferem de outros, do passado? Representam um ponto de ruptura? 

Karine Damasceno: Nos Estados Unidos, como aqui, o racismo é estrutural. Então, em curtos intervalos de tempo, temos notícias da violência policial, principalmente contra homens jovens negros. Todas essas violências provocam respostas da comunidade negra estadunidense, mas o que está acontecendo agora tem uma proporção muito maior. Acredito que uma das razões foi a cena ter sido filmada e assistida e compartilhada em todos os lugares do mundo. Como brasileira e negra, me sentindo parte dessa dor, quando vi a imagem de George Floyd dizendo “não consigo respirar”, eu também parei de respirar. Pessoas negras e não negras, no mundo todo, sentiram o mesmo. Outro grande diferencial é que, como o racismo é estrutural, a população negra é a que mais sofre com a covid-19. Mortalidade, desemprego, habitação precária… Várias questões vêm à tona e, somadas à violência policial, influenciaram nessa reação gigantesca. Mas não acho que os protestos levem a uma grande ruptura porque centram fogo na denúncia da violência policial, e não na necessidade de mudanças mais profundas na sociedade estadunidense. Por exemplo, o debate sobre reparação por conta da escravidão não aparece. Falar da violência policial é falar de um braço, e há várias outras instâncias, como educação, saúde, trabalho e poder. Isso, sim, mexeria com as estruturas do país. A resposta ao caso George Floyd foi à altura e foi inspiradora para negras e negros no mundo inteiro, mas a luta contra o racismo está em curso e há muito ainda o que se fazer.

Valquíria Daher

Jornalista
Instituto Ciência Hoje