Fernanda de Felice
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Aos 46 anos, a pesquisadora Fernanda de Felice considera sua maior riqueza as memórias de quase 25 anos atrás, quando duas de suas filhas eram pequenas. Para a professora do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, as lembranças são o que de mais doce uma pessoa pode guardar. Essa é uma das razões de seu interesse pela doença de Alzheimer, tema de pesquisa de toda a sua carreira. No início de 2019, a neurocientista e outros colaboradores publicaram artigo na revista Nature Medicine com resultados pioneiros sobre os efeitos de um hormônio chamado irisina no cérebro de pacientes com Alzheimer. O trabalho foi além e apontou, em pesquisas com camundongos, que a irisina pode agir na recuperação da memória e que a quantidade no cérebro desses animais foi aumentada como efeito de exercícios físicos regulares. Nesta entrevista, a pesquisadora explica o que se pode esperar de evoluções futuras e revela as dificuldades para completar o estudo diante da falta de incentivo à ciência no Brasil, que a levou a se mudar para o Canadá. “Vim para cá, pois foi a única alternativa para seguir com a atividade de pesquisa e terminar esse trabalho. A ciência no Rio de Janeiro está numa situação de penúria há mais de quatro anos”.
Ciência Hoje: Pode explicar mais sobre o estudo publicado na Nature Medicine e qual a importância dele?
Fernanda de Felice: Os benefícios dos exercícios físicos para combater algumas doenças, como as cardíacas, obesidade e diabetes, já são conhecidos do público. A maior parte das pessoas, no entanto, não está ciente do papel do exercício como protetor do cérebro, mas pesquisadores já estão estudando isso há algum tempo. Grandes estudos populacionais têm mostrado que quem se exercita tem menos possibilidade de desenvolver demência. Também há outros estudos que estão exercitando pacientes – aqueles que podem, é claro – e percebendo que a progressão da doença de Alzheimer é mais suave. Isso é muito recente, e faz a ciência tentar entender: afinal, o que está mediando os efeitos dos exercícios que parecem ser importantes no cérebro? Essa foi a pergunta que tentamos responder com esse estudo. A nossa hipótese é que a irisina, uma molécula recentemente descrita, que é um hormônio produzido pelo músculo em resposta ao exercício, poderia estar desempenhando um efeito protetor no cérebro. Não eram conhecidos os efeitos desse hormônio no cérebro e no contexto da doença de Alzheimer. Então, foi isso que investigamos. De modo resumido, nós vimos que esse hormônio está diminuído em pacientes com a doença, tanto no cérebro deles como no fluido cérebro-espinhal, o líquor. Diante disso, pensamos: será que a falta de irisina tem um papel nos problemas de memória? Fomos testar isso em animais em laboratório, e constatamos que se você depletairisina do cérebro dos camundongos, os animais apresentam problemas de aprendizado. Quando são submetidos a tarefas para testar a memória, déficits são claramente observados. Depois, usamos modelos animais da doença de Alzheimer e comprovamos que, parecido com o que está acontecendo com pacientes, há menos irisina no cérebro deles. Mas exercitamos esses animais, e isso parece fazer com que o cérebro deles fique protegido do dano causado por essa forma de doença que conseguimos desenvolver nos camundongos. Percebemos também que aumenta a quantidade de irisina no cérebro deles. Portanto, o exercício parece estar estimulando a produção de irisina, o hormônio está chegando ao cérebro e também protegendo o cérebro desses animais. Mas também era importante mostrar se a molécula per se é capaz de proteger, por isso tratamos camundongos doentes com irisina e vimos que, de fato, ela previne os déficits de memória que esses animais apresentam.
Valquíria Daher
Jornalista / Instituto Ciência Hoje