Qual a sua raça/cor?

O pesquisador que tentou atualizar seu currículo na Plataforma Lattes recentemente se deparou com a obrigatoriedade de preenchimento do novo campo ‘raça/cor’. O requisito tem levantado discussões na comunidade científica e gerado protestos nas redes sociais. 

Muitos cientistas, especialmente de áreas biológicas, não concordam com a inclusão do campo por acreditarem que o conceito de raça não é respaldado pela ciência e, portanto, não seria condizente com a plataforma científica. 

“Esta categoria de classificação cientificamente não aceita só faz aumentar o racismo”, postou a bióloga Flávia Rocha em sua página do Facebook. “Sou bióloga, pesquisadora, professora, brasileira. Isso já deveria ser o suficiente.”

A novidade não é exclusiva do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão que gerencia o Lattes. O quesito ‘raça/cor’ passou a ser campo obrigatório nos registros administrativos, cadastros, formulários e bases de dados do governo federal por determinação de um aviso circular emitido em dezembro do ano passado pelas ministras Gleisi Hoffmann (Casa Civil), Luiza Bairros (Igualdade Racial) e Miriam Belchior (Planejamento). 

Segundo a Sepir, a medida serve para que os órgãos públicos possam monitorar as ações de promoção da igualdade racial 

Segundo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sepir), a medida serve para que os órgãos públicos possam monitorar e avaliar as ações de promoção da igualdade racial previstas na lei 12.288, de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial.

“As desigualdades presentes no grau de alcance e de impacto das políticas públicas na realidade de mais da metade da população brasileira, que é negra, faz do quesito raça/cor um instrumento fundamental da ação governamental no planejamento, na avaliação e no alcance de tais políticas públicas”, explica a secretária de Políticas de Ações Afirmativas da Sepir, Angela Nascimento, em comunicado oficial.

Repercussão 

O geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é dos cientistas mais críticos à mudança no Lattes. Ao saber da novidade, enviou um e-mail ao CNPq manifestando sua opinião. 

“Disse a eles que a história está crivada de lamentáveis episódios em que a ciência se curvou perante demandas irracionais da política, com consequências invariavelmente dramáticas”, conta. “Ao contrário de colaborar imediatamente com essa imposição racialista e anticientífica, o CNPq deveria ter se recusado a obedecer a essa circular (que não está lastreada na Lei) e protestado fortemente através de sua Procuradoria Jurídica. Afinal, o CNPq deveria ser o primeiro a proteger a ciência, em vez de se curvar perante os burocratas do governo.”

Em e-mail à Ciência Hoje On-line, o CNPq respondeu que apenas acatou a decisão dos ministérios e que ainda “não há definição do uso desses dados”.

A indignação de Pena se explica pela sua linha de pesquisa. Há anos o geneticista estuda a ancestralidade genética da população brasileira e vem demonstrando que, biologicamente, não é possível falar em raças humanas. Outro ponto sustentado pelo trabalho de Pena é que, devido à ampla mistura de genes entre a população brasileira, não existe correspondência entre a cor da pele e a ancestralidade, podendo uma pessoa descendente de europeus ter pele escura e vice-versa. 

Com base nesses dados, o pesquisador toca a campanha internacional We are no race pela ‘desracialização’. Ele acredita que o fato científico da inexistência de raças deveria ser incorporado pela sociedade como forma de extinguir o racismo.

We are no race
O geneticista Sérgio Pena promove uma campanha contra a permanência do conceito de raça. (imagem: reprodução)

“Ações afirmativas são virtuosas e devem ser implementadas, mas é um contrassenso que, em prol de ações reparadoras, as próprias vítimas do racismo no passado queiram agora usá-lo como base para suas políticas de ação afirmativa”, diz. “A única opção é eliminar o conceito de raça completamente e criar uma sociedade ‘desracializada’, onde as diferenças individuais sejam valorizadas.”

A implementação do novo campo no Lattes também gerou desconforto para o antropólogo Roberto DaMatta. O pesquisador não vê razão para a mudança e acredita que o preenchimento do novo campo acaba reforçando a discriminação racial.

Pena: “É um contrassenso que as próprias vítimas do racismo queiram agora usá-lo como base para suas políticas de ação afirmativa”

Sempre fui favorável às cotas étnicas. Cansei de testemunhar o fato de não brancos só terem uma presença exemplarmente ausente das elites do Brasil”, escreveu em sua coluna no jornal O Globo. “O que me intriga nessa obrigatoriedade é descobrir o que a autoclassificação étnica tem a ver com pesquisa acadêmica e científica. Qual é o propósito de saber se sou desta ou daquela etnia quando registro no meu Lattes um artigo que acabo de publicar? Não estaríamos correndo o risco de promover racismo quando nosso objetivo seria liquidá-lo?”

Ciência x sociedade

A antropóloga Ilana Strozenberg, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda com a defesa de Pena por uma sociedade sem raça, mas lembra que esse conceito, apesar de não ter bases científicas na atualidade, já foi disseminado pela própria ciência e tem ainda hoje um forte peso social que não pode ser ignorado. 

“A raça é uma construção social que foi legitimada pela medicina, sobretudo no início do século 20”, lembra a antropóloga. “Durante muito tempo a cultura encontrou na ciência um respaldo para dizer que raça fazia sentido; hoje é o contrário. Com o avanço das pesquisas genéticas, se percebeu que a raça é uma falácia do ponto de vista da ciência, mas a noção permanece na maneira como as sociedades lidam com as diferenças entre pessoas. Quando um cientista faz questão de mostrar que a raça não existe é porque ele de alguma forma se dá conta de que a confirmação da existência das raças num determinado momento gerou uma justificativa para violência e discriminação.”

Strozenberg: “Quanto menos se enfatizar a ideia de raça e quanto mais se criticar essa ideia como critério para marcar a diferença entre seres humanos, melhor”

Ainda assim, Strozenberg acredita que a desracialização é uma forma válida de combater o racismo. “É importantíssimo divulgar que do ponto de vista da ciência a raça não faz sentido”, defende. “Pensar que a ciência vai ter essa influência no âmbito cultural é uma utopia, mas uma utopia em direção à qual devemos trabalhar. Quanto menos se enfatizar a ideia de raça e quanto mais se criticar essa ideia como critério para marcar a diferença entre seres humanos, melhor.”

A antropóloga, que escolheu a opção “não desejo declarar” (cor ou raça) ao preencher o Lattes, questiona os usos que poderão ser feitos com os dados fornecidos no novo campo. Ela teme que eles sejam tomados como base para justificar políticas de acesso ao ensino superior que focam a ideia de raça, mas deixam de lado a questão socioeconômica.

“A divulgação desses dados pode ser utilizada tanto para dizer que os negros não têm capacidade de inserção no ensino superior quanto para dizer que os negros são excluídos do ensino superior”, comenta. “A primeira opção seria o apocalipse e a segunda parte do pressuposto de que essas pessoas só são excluídas porque se identificam como negras. Esse discurso ignora todos os problemas da educação pública voltada para camadas de baixa renda. O impedimento ao acesso à universidade não é uma questão de cor, é uma questão socioeconômica, devido à falta de boas condições de vida e ensino público de qualidade.”

Já o economista da UFRJ Marcelo Paixão, responsável por propor cotas raciais nessa instituição, não vê razão para alarde e defende o preenchimento do novo quesito. 

Paixão: “A variável cor/raça não é novidade e constitui um importante mecanismo para mensurar as desigualdades sociais”

“A variável cor/raça não é novidade, faz parte dos sistemas de produção de dados estatísticos do país desde a década passada e constitui um importante mecanismo para mensurar as desigualdades sociais em nosso país”, afirma. “Sem elas, não saberíamos que grandes mazelas nacionais como o trabalho infanto-juvenil, o desemprego e a falta de acesso à terra têm incidência mais elevada para os pretos, pardos e indígenas. O mesmo ocorre no meio acadêmico brasileiro, que veio se notabilizando pela sua escassa presença de pessoas de peles escuras.”

Para Paixão, a geração de informações sobre a presença/ausência de pardos e negros na academia é importante para embasar ações direcionadas a superar o “monocromatismo de nosso ambiente acadêmico, potencializando que o sistema científico do país abrigue, dentro das salas de aulas e laboratórios, a mesma diversidade que caracteriza nossa população”.

 

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line