Quando dia e noite se confundem

O funcionamento do organismo dos seres vivos obedece a um ritmo cíclico de 24 horas de acordo com a percepção da variação luminosa que ocorre durante o dia. Mas o que acontece com os animais que vivem em altas latitudes, onde há ciclos bastante irregulares de luz e escuridão na maior parte do ano e os dias e noites se confundem? Pesquisadores das universidades de Manchester (Inglaterra) e de Tromsø (Noruega) descobriram que algumas espécies dispensam o uso desse relógio biológico e regulam seu ritmo em função do ambiente.

O estudo, publicado esta semana na Current Biology, observou renas (Rangifer tarandus) que habitam o Ártico. A pesquisa mostrou que a produção de melatonina, hormônio produzido pela glândula pineal e que controla o ritmo fisiológico, está relacionada à exposição à claridade e não a períodos cíclicos de 24 horas em que são repetidas as atividades diárias, como sono, vigília, secreção de hormônios e digestão (ciclo circadiano).

Para realizar a análise, os cientistas mediram a concentração de melatonina no sangue das renas quando os animais eram expostos a ciclos artificiais de 2,5 horas de luz seguidas pelo mesmo tempo de escuridão. Os resultados revelaram que o hormônio se manteve abaixo ou no nível mínimo de detecção durante a exposição das renas à luz. Entretanto, logo no início da fase escura do experimento, houve um aumento imediato da concentração de melatonina, que voltou a diminuir apenas na fase de luz seguinte.

Sem o ciclo circadiano, o comportamento das renas é ditado pelo sistema digestivo

A pesquisa concluiu que a produção da melatonina em renas está intimamente ligada à escuridão e que a secreção do hormônio persiste quando os animais são expostos continuamente ao escuro. Os níveis da substância no sangue aumentam a cada ‘noite’ subsequente. Já a exposição a um período contínuo de luz – como os que são experimentados durante o verão polar – interrompe esse ritmo.

Sem o ciclo circadiano, o comportamento das renas é ditado pelo sistema digestivo e pelo tempo que o alimento leva para ser processado. Assim, elas têm entre três e quatro horas de atividade e dedicam o resto do dia ao descanso.

Marcas da evolução

Segundo os pesquisadores, a ausência do relógio biológico em renas pode ser um traço evolutivo de adaptação a ambientes extremos. Isso porque mecanismos circadianos rígidos podem limitar comportamentos oportunistas e impedir que os animais levem certas vantagens, por exemplo, na alimentação.

A ausência do relógio biológico em renas pode ser um traço evolutivo de adaptação a ambientes extremos

“Essa é uma boa estratégia quando não há diferença entre ‘dia’ e ‘noite’ na maior parte do ano”, afirma Karl-Arne Stokkan, professor da Universidade de Tromsø e um dos autores da pesquisa. “Um rigoroso regulador de tempo interno criaria repetidamente um ‘modo noturno’, fazendo-os perder algumas oportunidades”, completa.

Em outra parte do estudo, os pesquisadores compararam células da pele das renas com as de ratos e humanos para analisar genes responsáveis pelo controle do relógio biológico. O grupo descobriu que, nas renas, esses genes não se comportam da mesma maneira que nas outras espécies. Os cientistas suspeitam que as renas tenham todos os genes relacionados ao relógio biológico, mas que eles sejam regulados por um mecanismo diferente.

Para Stokkan, o estudo evidencia a flexibilidade dos relógios biológicos dos seres vivos em função do ambiente em que vivem. “O conhecimento sobre relógios biológicos é geralmente baseado em pesquisas que utilizam roedores de laboratório e humanos”, diz. E acrescenta: “Nossas descobertas ressaltam a importância de se estudar outros modelos de animais e de se prestar mais atenção ao seu ambiente natural.”

 

Camilla Muniz
Ciência Hoje On-line