Quando três não é demais

Centenas de bebês por ano nascem com sérias doenças genéticas de herança mitocondrial. Fardo atribuído à linhagem materna – a única capaz de perpetuar essa herança – pode ser resolvido por meio de novas técnicas de fertilização in vitro (FIV) envolvendo três doadores.

Dois deles – os pais que desejam ter o filho – já estão envolvidos na técnica convencional de FIV. A novidade é o terceiro elemento, que entra na história como um “doador de mitocôndria”.

As mitocôndrias, organelas fundamentais à geração de energia e ao metabolismo celular, localizam-se no citoplasma de todas as células do corpo e possuem DNA próprio – ou seja, diferente daquele presente no núcleo celular. 

A fertilização com três doadores poderia evitar a transmissão de mutações genéticas mitocondriais de mãe para filho

As que estão no óvulo fertilizado são passadas para a nova geração e, junto com elas, as eventuais mutações genéticas contidas em seu DNA. Cerca de 70 tipos de mutações em genes do DNA mitocondrial estão relacionados ao desenvolvimento de doenças, muitas vezes, fatais. 

A fertilização com três doadores poderia evitar a transmissão de mutações genéticas mitocondriais de mãe para filho e, assim, evitar a manifestação dessas enfermidades.

Três alternativas

Ela pode ser feita de três formas: por transferência de núcleo entre gametas, por transferência do núcleo na fase de zigoto ou por transferência de citoplasma.

A primeira técnica consiste na passagem do núcleo do óvulo da futura mãe para outro óvulo portador de mitocôndrias saudáveis cujo núcleo tenha sido removido. O gameta proveniente do futuro pai fecunda, então, esse óvulo híbrido.

No segundo tipo de procedimento, o gameta masculino fecunda o óvulo da mãe doadora. Quando o óvulo fecundado se torna um zigoto, seu núcleo é então transferido para o óvulo da terceira doadora – previamente enucleado – com mitocôndrias saudáveis.

O terceiro método de fertilização a três – a transferência citoplasmática – foi desenvolvido por uma equipe da Universidade de São Paulo (USP), em Pirassununga, coordenada pelo geneticista Flávio Vieira Meirelles. 

Transferência de citoplasma
Na transferência citoplasmática, o óvulo da mãe doadora é centrifugado e o citoplasma deslocado para periferia da célula, facilitando sua remoção. Corada em vermelho está a porção de mitocôndrias (letra M) e, abaixo delas, o núcleo contendo o zigoto (4). (foto: Christina Ramires Ferreira/ FZEA-USP)

Nessa técnica, o óvulo da mãe doadora é centrifugado e o citoplasma deslocado para uma porção periférica da célula, facilitando sua remoção – junto com as mitocôndrias. O citoplasma de uma doadora saudável substitui o da primeira doadora e o óvulo é fertilizado pelo gameta masculino.

Além de evitar doenças mitocondriais, a transferência citoplasmática é capaz de fazer com que doadoras inférteis apresentem embriões viáveis. Os pesquisadores da USP verificaram que o novo citoplasma introduzido pode ajudar no desenvolvimento do embrião.

Proibidas por lei

Embora a ciência já permita que uma mulher com mutações no DNA mitocondrial tente ter filhos saudáveis, por meio das técnicas mencionadas, ela ainda não poderia fazê-lo. O procedimento é proibido por lei em diversos países, inclusive no Brasil. Hoje, não é permitido utilizar óvulos geneticamente modificados, mesmo que a alteração seja feita no DNA mitocondrial.

Pesquisadores britânicos, em conjunto com cientistas de outros países, incluindo o Brasil, estão pleiteando uma mudança na legislação do Reino Unido para permitir o início da fase de estudos clínicos em humanos da fertilização com três doadores. Em última instância, pretende-se admitir a aplicação dessas técnicas nas clínicas de fertilização. 

As técnicas não eliminam todas as mitocôndrias maternas, mantendo o risco de restarem organelas afetadas

Relatório publicado pela Autoridade em Embriologia e Fertilização Humana (HFEA) do Reino Unido, no mês passado, indica que não há evidências de que as técnicas apresentem riscos. No entanto, há necessidade de mais estudos em animais para que os procedimentos sejam aceitos.

“As técnicas de fertilização in vitro com três doadores não eliminam todas as mitocôndrias maternas, mantendo o risco de restarem organelas afetadas”, afirma Meirelles, que estuda fertilização in vitro em modelos bovinos. “Mas sobram poucas nessa condição: em geral, 4% a 5% da quantidade original”, pondera.

O pesquisador acrescenta que o objetivo das técnicas seria enriquecer o óvulo com mitocôndrias saudáveis, mesmo sem a eliminação total das mitocôndrias alteradas.

Mesmo antes de as técnicas serem aprovadas, já surge a dúvida: essa criança, fruto da fertilização in vitro com três doadores, terá três pais?

Meirelles diz que não. Para ele, é pouco provável que haja influência do DNA mitocondrial sobre as características fenotípicas do indivíduo gerado – aquelas que fazem os pais parecerem morfologica e fisiologicamente com seus filhos. 

Paternidade
Se aprovadas, as técnicas de fertilização a três podem gerar dúvidas sobre a paternidade da criança gerada. Geneticista da USP diz, no entanto, que é pouco provável que haja influência do DNA mitocondrial sobre suas características fenotípicas. (foto: Pal Csonka/ Scx.hu)

“As funções e a forma dos genes mitocondriais têm se mantido iguais para maioria dos organismos ao longo de todo o tempo evolutivo e isso é um bom indicativo de que a mitocôndria do terceiro doador será tão parecida com a dos pais doadores que não afetará o fenótipo da criança”, complementa o pesquisador.

Gabriela Reznik
Ciência Hoje On-line