Quase uma nova espécie

 



A classificação do golfinho-pintado-do-atlântico ( Stenella frontalis ) pode abranger duas espécies (fotos: Shirley Pacheco / Instituto Terra&Mar;).

Até bem pouco tempo atrás, era consenso entre cientistas que o oceano Atlântico abrigava uma única espécie de golfinho-pintado-do-atlântico ( Stenella frontalis ). Mas estudos recentes feitos pela organização não-governamental Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars) indicam que pode haver duas diferentes espécies do cetáceo.

Tudo começou há cinco anos, quando o biólogo Ignacio Moreno, que preside o Gemars, estudava os golfinhos-pintados no laboratório de Ictiologia do Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS. Os dados sobre o golfinho-pintado-do-atlântico mostravam que o animal se distribuía, no lado ocidental do oceano, desde a costa do Rio Grande do Sul até os mares dos Estados Unidos. Ao comparar exemplares do litoral sul brasileiro com esqueletos de golfinhos do Atlântico norte, Moreno descobriu que há diferenças morfológicas entre populações das duas regiões.

Ao analisar registros de avistamento de Stenella frontalis , ele verificou que há um isolamento geográfico de uma população que se distribui desde a costa gaúcha até a região de Abrolhos, entre Espírito Santo e Bahia. Subindo em direção ao Atlântico norte, os golfinhos, até agora identificados como de uma única espécie, só reaparecem na região da Paraíba, cerca de 1.200 km acima. A separação é justificada por uma depressão de mil metros no oceano que impede que os animais passem de uma área para a outra. O mesmo obstáculo isola as populações que vivem do outro lado do Atlântico, na costa do continente africano.

Especiação

Distribuição do golfinho-pintado-do-atlântico na costa brasileira (área esverdeada). A área branca, do sul da Bahia até a Paraíba, abrange a depressão que isolou duas populações da espécie (clique no mapa para ampliá-lo).

A primeira fase no processo de diferenciação de uma espécie (especiação) é o isolamento de uma população. Sem poder trocar genes com indivíduos de outros locais, o grupo isolado acaba se adaptando exclusivamente à região em que vive.

Embora tenha sido provado que uma população de golfinhos vive afastada do restante, não se pode afirmar que o tempo de isolamento tenha sido suficiente para a diferenciação. Provavelmente a separação ocorreu após um recuo do mar, que interrompeu a zona de baixa profundidade por onde os mamíferos podiam se deslocar. “O fenômeno pode ter acontecido milhões de anos atrás ou há apenas centenas de anos”, diz Moreno. Ainda que se soubesse quando isso ocorreu, qualquer conclusão a respeito seria precipitada. O período necessário para a diferenciação de uma espécie depende de muitas variáveis.

Após visitar vários museus e coleções científicas no Brasil e duas coleções nos Estados Unidos, o biólogo fez um estudo de craniometria de exemplares do Atlântico norte e do Atlântico sul ocidental. Ao comparar número de dentes, forma e tamanho do crânio, entre outras características, verificou que há um número significativo de diferenças: mais uma evidência de que se trata de espécies distintas.

Biologia molecular
Com a colaboração da bióloga Larissa Oliveira e de pesquisadores da Califórnia, está sendo feito agora o seqüenciamento do DNA de mitocôndrias dos golfinhos. A análise do material genético dessas organelas celulares é mais fácil e tem custo menor do que a realização do mesmo processo com o DNA do núcleo. A coleta das amostras é feita em alto-mar com o auxílio de instrumentos de biópsia para extração de pequenos pedaços de pele. A técnica, considerada pouco invasiva, não fere o animal.

Antes do estudo feito na PUCRS, acreditava-se que o golfinho-pintado-do-atlântico era uma única espécie, ocorrendo desde a costa do Rio Grande do Sul até os Estados Unidos. 

Moreno explica que, mesmo não havendo coincidência de código nas seqüências estudadas das duas populações, ainda assim não será possível afirmar que os grupos não compartilham genes. Como a cabeça do espermatozóide que fecunda o óvulo não tem mitocôndrias, o DNA dessa organela carrega informações apenas da linhagem materna. “Em uma época em que ainda havia o contato, pode ser que apenas os machos migravam para se reproduzir.”

Se, por meio do estudo realizado atualmente, surgirem evidências suficientes de que não houve fluxo gênico, os cientistas passarão a analisar o material genético do núcleo da célula, que contém dados da linhagem materna e paterna. Caso não sejam espécies distintas, a diferença encontrada nas seqüências de DNA mostrará o quanto o isolamento foi importante. “Assim, ficarão claras as condições às quais a população teve que se adaptar”, afirma o biólogo. De qualquer modo, o isolamento geográfico por si só é importante para a definição de estratégias de manejo e proteção dessa população exclusiva da costa brasileira.

Célio Yano
Especial para a CH On-line / PR
02/05/2006