Como vai a saúde do brasileiro? Uma série de seis artigos publicados na revista médica britânica The Lancet mostra que ela tem melhorado: a expectativa de vida da população aumentou e o acesso aos serviços de saúde também. O país progrediu em áreas como a saúde infantil e o combate à doença de Chagas, mas ainda sofre com enfermidades como a dengue, a leishmaniose visceral e a depressão.
Os artigos, escritos por 29 especialistas brasileiros em saúde pública, revelam que a saúde e a nutrição das crianças brasileiras melhoraram rapidamente a partir dos anos 1980. Até 1990, o país assistiu a uma queda de 5,5% na taxa anual de mortes infantis.
Os pesquisadores associam essa melhora à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, que universalizou o acesso ao atendimento médico, e a iniciativas voltadas para nutrição infantil, como o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno, que desde 1981 atua na coleta e distribuição de leite materno e divulga a importância da amamentação.
As doenças infecciosas de maneira geral também têm afetado menos os brasileiros. De acordo com os artigos, nos últimos 80 anos, o número de mortes por elas provocadas caiu de 50% para 5%.
O maior exemplo de sucesso da saúde pública nessa área foi o controle da doença de Chagas, infecção causada por um protozoário – o Trypanosoma cruzi – e transmitida pela picada do besouro barbeiro. Apesar de ainda não existir tratamento para a enfermidade, a sua transmissão foi praticamente extinguida.
Segundo um dos estudos, restam apenas os portadores crônicos, a maioria com mais de 60 anos, que contraíram a doença durante a juventude e ainda sofrem com os danos por ela provocados, principalmente ao coração e ao sistema nervoso.
Doenças que preocupam
Por outro lado, os artigos apontam que a dengue já é uma epidemia sem controle. Entre 2000 e 2009, foram registrados 3,5 milhões de casos da doença e 845 óbitos dela decorrentes. Mesmo com investimento do governo de mais de meio bilhão de dólares por ano em técnicas de controle do mosquito, a doença avança.
“Os problemas da dengue são três: não conseguimos controlar o mosquito transmissor por falta de medidas eficientes, não há vacina e ainda existem formas mais severas da doença, que durante uma epidemia são de difícil manejo pelo sistema de saúde”, explica um dos autores, o epidemiologista Mauricio Lima Barreto, da Universidade Federal da Bahia.
Outra doença que atinge crescimento preocupante é a leishmaniose visceral, também conhecida como calazar. Apesar de não ser muito comentada, a enfermidade, que também é transmitida por mosquitos, é letal e apresenta alta incidência na população, com uma média anual de dois casos por 100 mil habitantes.
Segundo Lima Barreto, o aumento dos casos de leishmaniose visceral e dengue se deve ao processo de urbanização pelo qual o país vem passando. Os altos fluxos de migração de pessoas do campo para as cidades e o desmatamento facilitaram a proliferação dos mosquitos e aumentaram a área de transmissão das enfermidades.
“Nesses casos, não bastam somente ações de saúde para controlar as doenças, é preciso também uma integração com políticas mais amplas de educação ambiental e saneamento”, pondera o pesquisador.
Além das doenças infecciosas, as pesquisas apontam para o crescimento de alterações neuropsiquiátricas, como a depressão, que já afetam 19% dos brasileiros, passando as enfermidades cardiovasculares, que acometem 13% da população, e os cânceres, que atingem 6% dela.
Mais acesso à saúde
Entre sucessos e fracassos, os trabalhos destacam a importância do SUS. Apesar dos defeitos do sistema, que sofre com uma alta rotatividade de médicos e falta de equipamentos e leitos, os pesquisadores brasileiros acreditam que ele foi fundamental para a expansão do acesso ao atendimento médico.
Um dos artigos aponta que da criação do SUS até 2008 houve um aumento de 174% no uso de serviços de saúde por parte da população. “O SUS tem seus problemas, mas foi graças a ele que atingimos uma cobertura universal para vacinação e assistência pré-natal”, afirma uma das autoras, a pesquisadora Cláudia Travassos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
No entanto, o conjunto de trabalhos mostra que o número de brasileiros que já visitou um médico – 68% da população em 2008 – ainda é baixo se comparado ao dos países mais desenvolvidos, como Alemanha, França e Canadá, onde a taxa é de mais de 80%.
Os estudos também revelam que apesar de o país dispor de um sistema público de saúde, uma grande parcela da população, 20%, recorre aos planos de saúde privados. De 2002 a 2008, o número de brasileiros com planos aumentou em mais de seis milhões.
“O sistema privado cresceu extraordinariamente e atingiu uma complexidade e um tamanho que cria contradições com o SUS”, afirma Travassos. “O maior paradoxo é que existe um sistema público e universal, mas as pessoas estão gastando mais com a saúde do que o próprio Estado.”
Para a pesquisadora, o aumento da participação do setor privado no mercado cria uma competição injusta com o SUS que leva a desigualdades no acesso à saúde de diferentes setores da sociedade. Segundo os autores, pessoas com planos de saúde privados têm chance 70% maior de usar um serviço de saúde em caso de necessidade do que quem tem o SUS como única opção.
“O grande problema é que o setor privado de saúde no Brasil se mantém em cima das deficiências do SUS, que não recebe recursos suficientes para dar conta de um sistema universal que ofereça atenção integral e continuada em todos os níveis”, conclui Travassos.
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line