Um surto do vírus da língua azul (VLA) acometeu 99 animais de um rebanho ovino em janeiro deste ano no município de Vassouras, interior do Rio de Janeiro. A infecção, que prejudicou a produção de leite e a reprodução de carneiros e ovelhas, assim como o desenvolvimento dos cordeiros, é considerada rara no Brasil e não possui medidas de prevenção e controle.
Dentre os animais infectados, quatro ovelhas gestantes e dois cordeiros morreram. De acordo com o veterinário Mário Balaro, aluno de doutorado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da equipe que identificou o surto, o número de doentes ainda cresce. “A propriedade onde houve o surto foi interditada porque continua apresentando ovinos positivos para o vírus”, explica.
Além da morte dos animais, o surto acarreta diversos prejuízos para o produtor rural. “As perdas podem ser tanto diretas, como óbitos, abortamentos e produção de leite reduzida, quanto indiretas, como a dificuldade de comercializar os animais vivos, sêmen e alguns produtos”, comenta o pesquisador. “As ovelhas tiveram queda de até 80% na produção de leite e os cordeiros de até 66% em relação ao ganho de peso estimado”, acrescenta.
Nos Estados Unidos, três bilhões de dólares são perdidos anualmente por causa da infecção por VLA. Já no Brasil, apenas três casos foram registrados nos últimos 30 anos. No entanto, a pequena detecção do vírus em território nacional pode estar associada a erros de diagnóstico. “Os estudantes de medicina veterinária não são treinados para reconhecer os sintomas e os confundem com doenças rotineiras como verminose e pneumonia”, diz Balaro.
Mesmo profissionais mais experientes podem ter dificuldade de identificar a doença. “Em Vassouras, nós inicialmente pensávamos que os animais haviam consumido uma planta tóxica”, observa o veterinário.
O diagnóstico inicial é feito com base em sintomas como febre, vermelhidão e inchaço na cabeça e no pescoço, lesões na boca e, em casos agudos, acúmulo de líquido no pulmão, que pode levar à morte. Apesar de dar nome à doença, o inchaço e a aparência azulada da língua raramente se manifestam.
Transmissão fácil
Além do diagnóstico complexo, outro aspecto que preocupa os pesquisadores é a alta capacidade de disseminação do VLA. Transmitido por um inseto conhecido como mosquito-pólvora ou maruim, o vírus se espalha rapidamente e pode atingir outros rebanhos.
A situação se agrava pela capacidade do vírus de também infectar bovinos. De acordo com Balaro, embora o VLA não cause sintomas nesses animais, ele os torna fonte de contaminação para os ovinos. “Além disso, o vírus circula no sangue dos bovinos por quase três vezes mais tempo do que nos ovinos, o que pode amplificar sua ação na região”, ressalta.
Até hoje, somente o VLA sorotipos 4 e 12 foram identificados no Brasil. No entanto, a Índia, principal país de onde importamos gado zebuíno, possui 10 dos 26 sorotipos de VLA já encontrados na natureza. “O problema é que não sabemos quais sorotipos de VLA provavelmente vieram e ainda vêm junto com os bovinos da Índia”, acrescenta o veterinário.
Balaro esclarece que o meio mais eficaz de controlar a transmissão da doença é a vacinação. “A União Europeia sofreu muito com o VLA sorotipo 8 e passou a protocolar e subsidiar a vacinação dos rebanhos com o vírus inativado, o que fez o número de focos notificados cair de 45 mil em 2008 para 39 em 2012”, lembra. “O problema é que a vacina não é produzida no Brasil e sua importação não é autorizada.”
Após o surto em Vassouras, os pesquisadores da UFF notificaram o episódio à Secretaria Estadual de Agricultura e Pecuária e solicitaram a vacinação dos rebanhos – o que ainda não foi feito. Por enquanto, o foco está sendo acompanhado e foi realizado um teste laboratorial para detectar a presença do vírus nos rebanhos localizados no entorno. Sem medidas de controle da infecção, o surto pode atingir os rebanhos vizinhos, como os de Paty do Alferes, a cerca de 30 quilômetros de Vassouras.
Em parceria com os órgãos responsáveis, a equipe elaborou um plano estratégico para o monitoramento da doença no estado do Rio de Janeiro, que inclui medidas a serem adotadas em caso de novos focos (como elaboração de zonas de proteção), vigilância do Estado em relação ao mosquito transmissor e ao vírus e controle do trânsito animal a partir de testes para detectar o VLA. “Enviamos o projeto para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento onde, no momento, acredito estar em processo de avaliação”, diz Balaro.
Em humanos?
Quando perguntado se o VLA pode infectar humanos, Balaro é sincero. “Não sei. Hoje existe um consenso de que não, mas já foi relatado um caso de uma pessoa que trabalhava com o vírus em laboratório e ficou doente.” O pesquisador acrescenta que, em estudos feitos in vitro, o VLA mostrou-se capaz de atacar células pulmonares humanas.
No entanto, o veterinário observa que lida diretamente com animais doentes há quatro meses e nunca apresentou sintomas. “Mas não posso garantir, por exemplo, que gestantes, que naturalmente têm o sistema imune frágil, lidem diretamente com animais infectados e não adoeçam”, ressalva. “Cadelas prenhas já foram infectadas e sofreram abortos e óbitos. Se pensarmos que os cães têm um organismo (ou sistema metabólico) tão diferente dos ruminantes quanto nós, por que eles podem ficar doentes e nós não?”
Mariana Rocha
Ciência Hoje/ RJ