Registro escrito, força à identidade

Uma língua africana falada por mais de 2 milhões de pessoas no Sudão do Sul vai em breve ganhar registro escrito. Torben Andersen, doutor em línguas nilóticas ocidentais e professor da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, está na fase final do trabalho de documentação do dialeto Agar, um dos quatro do idioma dinka que, ao final do projeto, vai ganhar alfabeto, gramática e dicionário próprios.

O dinka pertence à família das línguas nilóticas ocidentais, que é uma subdivisão do filo nilo-saariano, e é falada pelo povo homônimo, o maior grupo étnico do Sudão do Sul. Os outros dialetos da língua são o Padang, o Rek e o Bor.

Assim como o vietnamês, o dinka é uma língua monossilábica. No entanto, diferentemente do que ocorre com outras línguas desse tipo, o dinka tem uma morfologia complexa, na qual a flexão das palavras acontece por meio de variações no tom, timbre ou duração da pronúncia das vogais.

Andersen: “Tive inicialmente muita dificuldade para aprender o dinka porque não sabia a que nuances de som eu deveria prestar atenção ao ouvir a língua”

No dinka, as vogais têm dois timbres (também chamados qualidades vocálicas) e três tons (alto, baixo e decrescente), mas o que a faz peculiar é a existência de três durações vocálicas (curta, meio longa e longa). Segundo Andersen, entre os linguistas supõe-se que, de modo geral, as línguas têm, no máximo, duas durações vocálicas, como é o caso do dinamarquês.

A grande variação vocálica do dinka a torna uma língua difícil de aprender para os que não a têm como língua materna. “Tive inicialmente muita dificuldade para aprender o dinka porque não sabia a que nuances de som eu deveria prestar atenção ao ouvir a língua”, conta Andersen.

Em 20 anos de contato com a língua, o pesquisador reuniu 3.600 páginas de anotações escritas à mão e outras milhares de páginas de resumos, dados e análises que lhe dão agora a base para a documentação escrita da língua.

Gravação de canção infantil dinka
Elizabeth Achol grava canção infantil dinka no âmbito do projeto britânico ‘Métrica e melodia em canções e discurso dinka’, nas instalações da organização internacional Summer Institute of Linguistics (SIL), em Juba, Sudão do Sul. (foto: SIL)

Banida pelo governo árabe sediado em Cartum durante a guerra civil no Sudão, o dinka escrito será usado na construção do sistema educacional do Sudão do Sul, país que se separou oficialmente do resto do Sudão em julho do ano passado. Andersen acredita que o ensino da língua escrita nas escolas contribuirá para fortalecer a identidade cultural sudanesa.

O esforço brasileiro

A experiência com o ensino da língua materna aos povos indígenas, iniciado nos anos 1990 nas escolas indígenas brasileiras, mostra que a expectativa do pesquisador dinamarquês é justificada. A linguista brasileira Ruth Monserrat, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cita o guarani como exemplo de como o ensino escolar de línguas indígenas nas aldeias está despertando em professores e alunos o interesse pela própria cultura.

No entanto, a situação das línguas indígenas no Brasil é bastante complexa. “São cerca de 180 línguas, algumas ligadas a famílias ou a troncos linguísticos, algumas isoladas, a maioria pouco estudada em profundidade, todas em perigo de extinção”, diz.

Ruth Monserrat explica que linguistas e instituições como o Museu Nacional, o Museu Emílio Goeldi e o Museu do Índio têm procurado documentar as línguas e culturas indígenas, criando bases de dados para isso, “mas o avanço da civilização urbana sobre as regiões com áreas indígenas é avassalador”.

Monserrat: Muitos professores estão descobrindo que a língua materna de um povo é parte integrante do seu universo cultural e de sua coesão social

Ainda assim ela vê alguns sinais de avanço. “Há um número cada vez maior de professores indígenas atuando em escolas nas aldeias, oriundos de cursos específicos para formação de docentes indígenas em vários estados que são orientados para trabalhar com suas línguas nas escolas.”

Segundo ela, apesar de todas as falhas no sistema de ensino das línguas indígenas, muitos professores “estão, pouco a pouco, descobrindo – em parte auxiliados por professores linguistas em seus cursos de formação – que a língua materna de um povo é parte integrante do seu universo cultural e de sua coesão social”.

História de Maper, na língua de Maper

A gravação de dois minutos de duração começa com a história do falecido Maper Ayuel, cuja esposa e filhos estavam chocados e amedrontados depois de sua morte na batalha de Aguany Ariem, ocorrida no estado de Warrap, no Sudão do Sul. A narração é feita pelo primo de Maper, Ater Yai, que conta como ele ajudou a viúva de Maper a fugir com as cinco crianças do casal para a Etiópia. Durante a jornada, um soldado tentou raptar a filha de Maper, chamada Aguek. Ater Yai relembra a noite em que conseguiu proteger a menina e colocá-la em segurança, sentada em frente ao fogo para beber leite.

Ater Yai fala também sobre sua tentativa fracassada de se aliar ao Exército de Libertação do Povo do Sudão (SPLA, na sigla em inglês) em 1984. Ele e o grupo do qual fazia parte caíram numa emboscada liderada por Anyanya 2, um movimento sul-sudanês de oposição ao SPLA. Liderado por John Garang, o SPLA lutava pela liberação de todo o Sudão, enquanto o movimento de Anyanya lutava apenas pela independência do sul do Sudão. Ater conseguiu escapar da emboscada e fugiu para Malakal, de onde foi levado para Wau. Em 1986, decidiu novamente se aliar ao SPLA.

A gravação foi feita no dia 10 de dezembro de 2011, em Juba, Sudão do Sul, por Peter Malek, irmão de Maper Ayuel, que trabalha como alfabetizador e educador para a organização internacional Summer Institute of Linguistics (SIL).

Margareth Marmori
Especial para a CH On-line/ Copenhague